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domingo, 18 de novembro de 2012

Latim serve para alguma coisa?


Capa de livro em latim. O que será que está escrito?

O recente estabelecimento de uma academia pontifícia para estudos da língua latina, pelo Santo Padre o papa Bento XVI, é um momento que sinto oportuno para expressar algumas pensamentos que me ocorrem sobre o latim, em texto que venho adiando há bastante tempo.

Este texto é para todos os leitores e interessados, mas de modo especial, acredito, se destina àqueles que são contra o latim na Igreja.

Ainda assim, não é apenas sobre o latim na Igreja que quero falar.

Sempre que se fala no latim, seja no Salvem a Liturgia ou em outros sites e fóruns, um argumento comum dos opositores é: "se a Igreja quer voltar tanto, o certo era fazer a Missa em aramaico, que era a língua de Jesus."

E aqui devo lembrar aos amigos que não é questão de voltar a origem nenhuma. Usamos latim não porque ele é antigo; não temos preferência automática pelo mais antigo, o que nos faria preferir latim ao português, aramaico ao latim, hebraico ao aramaico etc. A Igreja começou a usar o latim na época em que era língua de ampla difusão, e realmente era falado; e simplesmente o manteve. Com o tempo, o latim passou a ser o idioma da Igreja. No começo, não era. Passou a ser. O latim deixou de ser falado como tal, transformou-se nas suas derivadas (português, castelhano, italiano, francês e outras), mas continuou sendo usado como língua litúrgica, de ciência e de cultura. Se isso é uma língua morta, existem idiomas falados ainda mais mortos que o latim!

A Igreja não usa latim por motivos mágicos. Outros ritos (que não o Romano) usam outras línguas; e são línguas litúrgicas. Inclusive o próprio aramaico, que os opositores do latim sugerem, freqüentemente com ironia. Usa-se o grego; usa-se o eslavônico eclesiástico, idioma que não se usa no dia-a-dia, tampouco.

A sugestão do aramaico por ter sido "a língua que Jesus falava" implicaria na ideia de estudar francês para poder rezar para Santa Teresinha. Não é obrigatório, embora a ideia tenha sua beleza, mas ainda assim é uma beleza excêntrica.

Precisamente por não ser falado, as palavras do latim conservam seu significado, e isto ajuda no estudo e na transmissão da Fé. Não há problema em que o fiel humilde e de pouco estudo não saiba latim, ele vai aprender o catecismo em português; mas os teólogos usam o latim. Os documentos escritos pelo papa, em sua forma original, se escrevem em latim; os ritos litúrgicos, em sua forma original, estão também nesse idioma, a partir do qual, se a Igreja considera oportuno, se preparam as versões nas diversas línguas.

Repito: as palavras do latim conservam seu significado, exatamente porque o latim não é falado. O leitor tenha a bondade de examinar o português. Que significado conhece para a palavra "galera"? Uma consulta ao dicionário vai revelar que a maioria de nós a conhece como gíria para "grupo de pessoas", embora originalmente seja o nome de uma embarcação. Que o leitor nos diz da palavra "legal", adjetivo que, nomeando aquilo que está dentro da lei, se tornou no Brasil gíria para "bom" ou coisa do tipo? E as palavras que têm significados diversos em regiões diversas?

Por isso mesmo, ainda que a Liturgia seja celebrada em português, repare o leitor que não é qualquer português. O português litúrgico faz uso de muitas palavras não utilizadas no dia-a-dia, recorre a formas gramaticais que ignoramos na vida diária, desenterra recursos de expressão que o povo falante não conhece mais. E assim deve ser: a língua da Liturgia precisa ser diferente da língua da vida cotidiana; ainda que seja o próprio português, precisa existir um grau de diferença, para permitir que nós, fiéis, sintamos com mais facilidade que não estamos diante de algo banal.

Claro, existem também aqueles que defendem a simplificação também desse português litúrgico. É preciso ter cuidado: primeiro ignoramos o latim; depois queremos simplificar o português; logo se vai querer abolir a Liturgia organizada, tentando substituí-la por uma espécie de programa de auditório espontâneo, o que já acontece parcialmente, em alguns lugares, na Oração da Assembleia. Existem também edições da Bíblia Sagrada que se gabam de ter linguagem "popular" e "acessível"; além de atrapalhar a educação dos fiéis (tanto religiosa quanto lingüística), aproveitam ainda para transmitir ideias marxistas por meio de notas inseridas na edição.

Pode-se não gostar do latim; mas quem trabalha para combatê-lo está realmente em péssima companhia.

Fora da Igreja o latim traz ainda grandes benefícios para quem o estuda. Ajuda no desenvolvimento da lógica e no aprendizado de outros idiomas e também do próprio português.

Ouvi, diversas vezes, de pessoas mais velhas, que "antigamente" se estudava latim na escola, e que isso é horrível e inútil. A extinção do estudo do latim nas escolas veio numa época em que o importante era aprender matérias técnicas úteis para o trabalho na indústria, no comércio; saber latim não dá oportunidades de emprego nem facilita a vida do jovem interiorano na cidade, nem traz promoções na vida do jovem da capital. Mesma coisa para a música, para a educação cívica, para outros idiomas estrangeiros. Só se admite o inglês, e, mesmo assim, seu ensino nas escolas é extremamente fraco. Parece popular a ideia de se aprender música na escola, mas não nos esqueçamos: o pensamento que tirou a música tirou também o latim. O desprestígio veio para todas as disciplinas "humanas", e a culpa não é das "exatas", que acabam também sofrendo por conseqüência.

Aos amigos que sempre nos alertam para o fato de que "o que importa é o coração", manifesto minha concordância: tanto vale o coração que nada digo, aqui, sobre ele, já que apenas Deus conhece o que se passa nos corações. Tudo o que eu, como todos nós, podemos comentar, são as particularidades do culto público que prestamos ao Senhor. Este culto necessita da organização e da moderação da autoridade da Igreja; e desde o início do Cristianismo vemos esse culto ser auxiliado e enriquecido pela utilização de uma língua litúrgica. Não me importa se isto que afirmei está do meu gosto ou não; é assim que ocorre há dois mil anos, e o leitor poderá verificar isto por si mesmo, sem acreditar na minha palavra.

O opositor do latim ainda quererá se apoiar no Concílio Vaticano II, cujos documentos não lhe fornecem nenhuma ajuda nesse sentido. Esse Concílio, como todos os outros, não pode ser evocado como uma nebulosa figura que supostamente justifica o que está dizendo o dono da palavra no momento; ele produziu documentos, e nenhum deles dá qualquer apoio ao desprestígio do latim.

Eu gostaria de resumir esse falatório todo em cinco pontos simples:

1) O latim foi adotado pela Igreja no início e ela o conservou. Seu uso não se deve simplesmente à sua "antigüidade".

2) A língua litúrgica precisa ser diferente. Se não é latim, é um português mais solene (nos países de língua portuguesa, claro).

3) Usar na Liturgia a mesma língua do dia-a-dia a transforma num ato que não tem nada de diferente ou especial.

4) Fazemos bem se estudamos, ao menos, o latim das orações e da Liturgia, dentro das nossas possibilidades e recursos.

5) Fazemos bem se estudamos o nosso próprio idioma, de modo a compreendê-lo em sua forma solene usada na Liturgia; beneficiamo-nos ainda, ao fazê-lo, por podermos entender melhor escritos religiosos (a Escritura, os Padres etc.).

*

O leitor, seja entusiasta ou opositor do latim, terá comigo a caridade de se lembrar de que esta pequena lista, no final do meu texto, não é uma tentativa minha de ditar mandamentos. E que quando digo que "fazemos bem", não estou dizendo que o leitor é do mal se considerar que não deve fazer tais coisas. O texto todo, embora se baseie nos fatos que podemos observar na Igreja, é uma reflexão minha que tenho o dever de compartilhar com aqueles que consideram o latim um assunto relevante.


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