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quinta-feira, 4 de junho de 2015

O Pentecostes. Festa restaurada ou cortada? - Pe. Jean-Pierre Herman

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Publicamos um artigo sobre a Vigília de Pentecostes que nos foi encaminhado pelo Pe. Jean-Pierre Herman. Infelizmente não consegui publicá-lo ainda durante a Oitava de Pentecostes, contudo, tenho certeza que será do agrado de nossos leitores.

O Pentecostes: Festa restaurada ou cortada? 

Por Pe. Jean-Pierre Herman
Originalmente publicado em Schola Sainte Cécile 
Tradução: Pe. Jean-Pierre Herman / Daniel Pereira Volpato


O Missal promulgado por Paulo VI em 03 de abril de 1969 praticamente eliminou as antigas vigílias e oitavas para as principais festas.

As oitavas são agora limitadas à Páscoa e ao Natal. Quanto às vigílias, permanece, para algumas festas, uma "Missa à noite anterior", que muitas vezes passa despercebida nas paróquias. É uma antecipação da festa e não mais um dia de jejum e preparação para a ela.

A Missa da Vigília de Pentecostes é um caso especial. Ela oferece a opção de quatro textos para a primeira leitura. São textos do Antigo Testamento que preparam para o dom do Espírito Santo. Isso é tudo o que resta da antiga e rica liturgia da vigília de Pentecostes. 

A "desmontagem" da liturgia de Pentecostes foi feita em duas etapas. A vigília caiu durante a reforma dos anos 50, e a oitava foi abolida durante a promulgação do novo missal.

A antiga Vigília de Pentecostes e seu carácter batismal

Monsenhor Gromier, em uma palestra famosa em ambientes tradicionais sobre a liturgia dita "restaurada" da Semana [Santa] por  Pio XII em 1955 [1], afirma:
A vigília de Pentecostes não possui mais nada de batismal, se transformou em um dia como qualquer outro, e fazendo mentir o missal no cânon. Esta vigília era um vizinho chato, um rival formidável! A posteridade educada será provavelmente mais severa do que a visão atual com relação à pastoral. [2]
Ele está se referindo aqui à recuperação próxima da vigília batismal de Páscoa pelos cristãos, praticada desde os tempos antigos na véspera de Pentecostes.

Os cristãos primitivos celebravam primeiramente todo o Mistério Pascal: morte, ressurreição, ascensão e o dom do Espírito Santo durante a grande noite da Páscoa. No entanto, muito rapidamente, o ensinamento da Igreja destacou os diferentes aspectos dela, quebrando as celebrações de acordo com a cronologia dos evangelhos.

Por outro lado, sabemos que os sacramentos da iniciação cristã: batismo, confirmação e Eucaristia, eram anteriormente atribuídos aos candidatos durante a mesma celebração, uma prática mantida pelas igrejas orientais. Cito o cardeal Schuster sobre a ligação intrínseca e ao mesmo tempo distinta entre Batismo e Confirmação:
Embora o sacramento do Batismo seja distinto do da Confirmação, ele recebe esse nome porque a descida do Espírito Santo na alma do fiel completa a obra de sua regeneração sobrenatural. Através do caráter sacramental, é conferido ao neófito uma mais perfeita semelhança com Jesus Cristo, que imprime o último selo ou confirmação à sua união com o divino Redentor. A palavra confirmação era também utilizada na Espanha para indicar a oração invocatória do Espirito Santo durante a missa: Confirmatio sacramenti; também a analogia existente entre a epíclese (que na missa, pede ao Paráclito a plenitude de seus dons sobre aqueles que se aproximam da Santa Comunhão) e a Confirmação, que os antigos administravam imediatamente após o batismo, esclarece o profundo significado teológico que está escondido sob o vocábulo “Confirmação” atribuído ao segundo sacramento. [3]
Tertuliano já fala da celebração dos batismos, não só na grande vigília de Páscoa, mas também para o Pentecostes:
Outro dia solene do batismo é Pentecostes, quando acontece um longo intervalo de tempo para dispor e educar aqueles que devem ser batizados.
A escolha não é inocente, porque no batismo, o bispo coloca sua mão direita sobre a cabeça do neófito, chamando o Espírito Santo por meio de uma bênção. [4]

Temos também uma carta do Papa Siricius (384-399) [5] ao bispo de Tarragona Himera atestando essa prática. Além disso, em uma carta aos bispos da Sicília, o Papa São Leão Magno (440-461) exorta-os a imitar São Pedro, que batizou três mil pessoas no dia do primeiro Pentecostes. [6]

Os livros litúrgicos posteriores nos dão um diagrama de uma celebração do mesmo tipo da Vigília Pascal, que encontramos em todos os missais que precederam a reforma de Trento e no Missal de São Pio V até a reforma da década de 1950.

Vamos deixar a Dom Guéranger o cuidado de descrever essa prática:
Nos tempos antigos, esse dia se assemelhava a véspera da Páscoa. Na noite os fiéis iam para a igreja para participar nas solenidades da administração do batismo. Na noite que se seguia, o sacramento da regeneração era conferido aos catecúmenos cuja ausência ou alguma doença os tinham impedido de se juntar aos outros na noite de Páscoa. Aqueles que ainda não tinham sido considerados suficientemente aprovados, ou cuja educação não parecia completa, tendo satisfeito as justas exigências da Igreja, também ajudavam a formar o grupo de aspirantes ao novo nascimento que se recebe a partir da fonte sagrada. Em vez das doze profecias que se liam à noite de Páscoa, enquanto os sacerdotes executavam os ritos preparatórios aos catecúmenos para o batismo, eles costumavam ler seis; Isto leva à conclusão de que o número de batizados na noite de Pentecostes era menos considerável. [7] 
O círio pascal reaparecia durante esta noite de graça, para educar o novo recruta o que fazia a Igreja, respeito e amor pelo Filho de Deus que se fez homem para ser "a luz do mundo”. Todos os rituais que temos descrito e explicado no Sábado Santo se realizavam nesta nova oportunidade, onde aparecia a fecundidade da Igreja, e o Divino Sacrifício do qual tomaram parte os felizes neófitos começava ainda antes do amanhecer. [8]

Nos tempos antigos, como relata Schuster, a celebração, junto com a Vigília Pascal, se fazia no Latrão durante a noite de sábado para domingo. No século XII foi antecipada para o início da tarde. Pelo fim do dia, o Papa então ia para São Pedro, para o canto das Vésperas e Matinas solenes. A extensão da celebração do batismo a outros dias e a prática do batismo infantil quam primum removeram a exclusividade destas celebrações na véspera de Pentecostes, reduzindo esse dia ao grau de preparação para a festa, mesmo grau das demais vigílias, mas mantendo na celebração um caráter claramente batismal.

Como apresentou Pio Parsch:
“Hoje é uma vigília solene e, portanto, de penitência completa, com jejum e abstinência (em algumas dioceses, no entanto, esta obrigação não se impõe mais com a pena do pecado; isso não é mais do que um simples conselho). A vigília é sempre um dia de preparação. A casa da alma deve ser limpa e preparada para a grande festa. Dois pensamentos ocupam o cristão que vive com a Igreja: a) ele se lembra de seu batismo; b) ele se prepara para Pentecostes.” [9]

Tempo e Estrutura da Vigília

Depois das nonas, lemos as profecias sem título, com as velas apagadas, assim como no Sábado Santo.

Esta é a rubrica que antecede a celebração da Vigília de Pentecostes nos missais. O seu tempo é o mesmo que o da vigília pascal. Anteriormente celebrada na noite de sábado para domingo, em seguida, no início da tarde, ele caiu dentro do âmbito do decreto de São Pio V, que impôs a antecipação dos ofícios ao amanhecer. A Vigília de Pentecostes, portanto, é celebrada na manhã de sábado.

Sua estrutura é semelhante ao do Sábado Santo, com a exceção da bênção do fogo e do Círio Pascal. Pius Parsch chama-lhe uma imitação abreviada do Sábado Santo. Ela começa pelas leituras das profecias, cada qual seguida de uma resposta e uma oração pelo celebrante, que é precedido por um convite do diácono: Oremus. Flectamus genua.

Depois, partimos em procissão até o batistério com a bênção da água, cantando versos do Salmo 41 (Sicut Cervus ad fontes aquarum). Depois de uma oração, o celebrante diz a oração de bênção da água, como na Vigília Pascal. Em seguida, retornamos para o altar em procissão cantando a Ladainha dos Santos, enquanto os celebrantes vão para a sacristia, a fim de revestir os paramentos para a Missa. [10]

A cor da vigília é o roxo. É especificado que o sacerdote utilize a capa de asperges para a procissão para o fonte batismal. O diácono e subdiácono levam a casula plicada (dobrada). A missa é em vermelho, a cor de Pentecostes.

No final das ladainhas, acendem-se as velas, os ministros vão para o altar enquanto o coro canta o Kyrie, eles recitam as orações ao pé do altar e o sacerdote incensa e entoa o Glória, durante o qual se tocam os sinos. [11]


Plano Da Vigília de Pentecostes

Proclamação das seis profecias:
Leitura + resposta + Flectamus genua + Oração
Procissão a pia batismal
Salmo 41
Bênção da Água
Procissão até o altar
Ladainha dos Santos
Missa


As Profecias

No rito primitivo havia doze leituras, como na Páscoa. Este número foi reduzido para seis por São Gregório Magno, e foi assim mantida até o século VIII, quando, sob a influência do Sacramentário Gelasiano, devolvemos à Vigília Pascal suas leituras originais.

As leituras de Pentecostes são tiradas da Páscoa, mas em uma ordem diferente.

Leitura
Pentecostes
Páscoa
1
Gn. 22 Sacrifício de Abraão
3
2
Ex 14 e 15 A passagem do Mar Vermelho
4
3
Dt 31 O Testamento de Moisés, o cumprimento da Lei
11
4
Is 4 A libertação de Jerusalém
8
5
Bar 3 O retorno à Terra Prometida
6
6
Ez 37 ossos secos
 7

A cada leitura se segue um responso.  Três desses são os mesmos que na Vigília pascal. As orações que se seguem, no entanto, são diferentes, retiradas do Sacramentário Gregoriano [12].

Elas reforçam, a sua própria maneira, a continuidade entre os dois Testamentos, e entre a passagem do Israel do Antigo Testamento, liberto da escravidão, ao novo Israel, de pessoas batizadas, libertas do pecado. Citamos aqui apenas aqueles que seguem a segunda e a quarta leitura, que são admiráveis:
“Deus, Vós revelastes pela luz da Nova Aliança o significado dos milagres realizados nos primeiros tempos: o Mar Vermelho tornou-se a figura da fonte sagrada do batismo, e as pessoas libertados da escravidão no Egito expressam os mistérios do povo cristão: fazei com que todas as nações que receberam pelo mérito da fé o privilégio de Israel sejam regeneradas através da participação em seu Espírito”. 
“Deus eterno e Todo-Poderoso, Vós tendes mostrado através de seu Filho unigênito que Vós sois o jardineiro de sua Igreja, misericordiosamente cuidador de todos os ramos frutificados em seu Cristo, que é a videira verdadeira, para que produzam mais frutos: fazei que os espinhos do pecado não sobrepujem vossos fiéis, que libertastes do Egito como uma vinha pela fonte do batismo; e que, fortalecidos pela santificação do Vosso Espírito, sejam enriquecidos por uma colheita sem fim”.
A descida para a pia batismal e a bênção da água, após a oração da sexta profecia, reutiliza todos os textos da Vigília Pascal, com exceção da coleta que precede a bênção da água, a qual fala da festa do dia:
“Concedei, nós vos rogamos, Deus Todo-Poderoso: nós, que celebramos a solenidade dos dons do Espírito Santo, que inflamados dos desejos celestes, tenhamos sede da fonte da vida.”
Vemos claramente, através destes textos, a íntima conexão entre o batismo, o dom do Espírito Santo e vida cristã.

Missa

Como vimos, a missa segue imediatamente a Ladainha. Como à Páscoa, não há Introito.  Só mais tarde, quando se espalhou o uso de missas privadas, que se acrescentou o Intróito "Cum sanctificatus”, emprestado da quarta-feira da quarta semana da Quaresma.

É o ápice da Vigília e reitera de uma maneira muito concisa a conexão entre o batismo e o dom do Espírito Santo em sua coleta:
Fazei, nós vos rogamos Deus Todo-Poderoso, que o esplendor de Vossa luz brilhe sobre nós; e o brilho de Vossa luz confirme, pela iluminação do Espírito Santo, os corações daqueles que Vossa graça tem revivido. Por Nosso Senhor...
Esta ligação é enfatizada ainda mais na carta dos Atos dos Apóstolos [13]. Trata-se do encontro de Paulo com os discípulos de João Batista.  Eles sequer tinham ouvido falar que há um Espírito Santo, depois do que Paulo batiza-os em nome de Jesus Cristo.

O resto da Missa é inteiramente centrada em Pentecostes, com o Evangelho [14] em que Jesus prometeu a seus discípulos que não os deixaria órfãos, mas que deviam orar ao Pai para que Ele enviasse o Consolador.

A Secreta e a Pós-comunhão pedem a purificação dos corações por meio do derramamento do Espírito Santo.

A oração do Canon contém duas partes próprias.  No Communicantes menciona-se a festa do dia:
“Unidos em uma comunhão e celebrando o santo dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo apareceu aos Apóstolos sob a forma de múltiplas línguas de fogo, e venerando primeiro a memória da gloriosa Virgem Maria, Mãe de Jesus Cristo nosso Deus e Senhor (...)”
Enquanto o Hanc igitur, como na Páscoa, reza pelos batizados da noite:
“Então, Senhor, este sacrifício que nós oferecemos, e com todos os seus filhos, hoje especialmente para aqueles que vós vos dignastes a regenerar pela água e pelo Espírito Santo, concedendo-lhes a remissão de todos os seus pecados...”

A reforma de 1955

Nos missais após 1955, a Vigília de Pentecostes é agora reduzida a missa, como descrito acima, com o seu Intróito "Cum sanctificatus”. As profecias, a procissão e a bênção da água foram simplesmente abolidos.

O caráter batismal da vigília foi apagado e a liturgia é inteiramente direcionada para a vinda do Espírito Santo.

Mantivemos a letra, que faz a conexão entre os dois sacramentos. Mas pode-se perguntar por que mantivemos o Hanc igitur que intercede pelos batizados da noite. E isto para a Vigília, dia e Oitava de Pentecostes, como era feito na Páscoa.

Esta oração já era simbólica antes da reforma, já que quase nunca havia batismos durante a celebração. No entanto, ela alargava o caráter batismal da vigília e [por isso] manteve seu lugar. Sua conservação aqui [após 1955], isola-a do resto da celebração e a reduz, mais do que antes, a um simples vestígio.

O missal de 1969

O Missal de 1969 inclui, como já dissemos acima, uma "Missa da noite." É uma missa de antecipação de Pentecostes que, apesar de uma ou outra oração mantida, está longe de ser a antiga vigília.

A antífona de abertura não é mais o velho Intróito "Cum sanctificatus", mas uma citação de Romanos 5.5: O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Seu Espírito que habita em nós, aleluia.

O aspecto batismal não é mais explicitamente mencionado e a ênfase é sobre a vinda do Espírito Santo e o encerramento do Tempo Pascal.

A antiga coleta foi mantida, mas é uma alternativa a outra, que está listada em primeiro lugar. Isto é, aparentemente, uma nova composição:
“Deus Todo-Poderoso e eterno, Vós quisestes que a celebração do mistério pascal crescesse durante estes 50 dias de alegria; fazei que as nações e os povos espalhados se reúnam apesar da divisão linguística para confessar juntos o teu nome. Jesus ...”
Esta é uma alusão a Babel, à divisão de linguagem, e à leitura Do dia seguinte, dos Atos, onde todos entendem na sua própria língua a pregação dos Apóstolos.

A peculiaridade desta Missa, única no missal, é uma escolha entre quatro textos como primeira leitura:
  • Gênesis 11, 1-9: A torre de Babel 
  • Êxodo 19, 3-20: Deus se manifestou no fogo, no meio de seu povo 
  • Ezequiel 37, 1-14: Os ossos secos 
  • Joel 3, 1-5: O Espírito vem habitar em todos os homens

À parte do texto de Ezequiel, todos os outros são diferentes das profecias da antiga vigília.
A continuação da Liturgia da Palavra é fixa: 
  • Salmo 104, 1: Senhor envie o seu Espírito e renovai a face da terra! 
  • Romanos 8, 22-27: O Espírito nos ajuda em nossa fraqueza 
Quanto ao evangelho, manteve-se Jo 7, 37-39: Jesus promete o Espírito aos crentes

O communicantes próprio da Oração Eucarística I é o do antigo missal:
“Na comunhão de toda a Igreja, celebramos o santo dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo se manifestou aos Apóstolos em inúmeras línguas de fogo; e nós queremos mencionar primeiro a bem-aventurada sempre Virgem Maria, Mãe de Deus e nosso Senhor Jesus Cristo ...”
A mesma fórmula, adaptada, também é transferida para as outras orações eucarísticas e, portanto, à Oração III:
“É por isso que estamos aqui reunidos na vossa presença e na comunhão de toda a Igreja, celebramos o santo dia  Pentecostes, quando o Espírito Santo se manifestou aos Apóstolos em inúmeras línguas de fogo. Deus Todo-Poderoso, nós vos imploramos consagrar as ofertas que trazemos ...”
Há logicamente mais menções de batizados no Hanc igitur ou seu correspondente nas novas orações.

A Oração sobre as Oferendas e a Oração Após a Comunhão referem-se frequentemente ao Espírito:
“Nós oramos, Senhor, derramai a bênção de Vosso Espírito em nossas ofertas; que Vossa igreja receba essa caridade que fará brilhar no mundo a verdade de sua salvação.”
E
“Senhor, que esta comunhão nos seja aproveitável, fazendo-nos viver do fervor do Espírito Santo com o qual Vós preenchestes vossos apóstolos maravilhosamente.”

Quanto à Antífona da Comunhão, ela é tirada do Evangelho:
“O último dia da festa, Jesus levantou-se e gritou: ‘Se alguém tiver sede, venha a mim e beba’ Aleluia.”
É de se perguntar por que a seqüência da frase, " Quem crê em mim", não foi adicionada.

Continuidade ou ruptura?

"A obrigação de rever e enriquecer as fórmulas Missal Romano foi sentida. O primeiro passo dessa reforma foi o trabalho de nosso predecessor Pio XII, com a reforma da Vigília Pascal e do rito da Semana Santa. Esta é a reforma que deu o primeiro passo para a adaptação do Missal Romano à mentalidade contemporânea”. Assim se expressa Paulo VI na Constituição Apostólica Missale Romanum [15].
Nós sempre voltamos para a mesma pergunta: as alterações desde os anos 50, e então durante a reforma litúrgica, são elas continuidade lógica e histórica do antigo rito romano-franco ou elas marcam uma ruptura?

Aqui vemos uma prática antiga completamente abolida. Esta eliminação, assim diz Mons. Gromier, remove todo o caráter batismal deste dia e centra-o na vinda do Espírito Santo.  Provavelmente era o objetivo dos membros da Comissão insistir sobre o batismo na Páscoa e sobre a confirmação em Pentecostes, através do dom do Espírito Santo.

No entanto, a Missa foi conservada, ainda que contenha elementos que lembram a vigília. Isto é, no mínimo, uma inconsistência. A "restauração" dos anos 50, aqui, nada restaurou. Não há necessidade de grande erudição para se perceber que esta reforma foi realizada às pressas e descobrir nela muitas inconsistências.

Quanto à forma de 1969, ela é, como já mencionado, uma nova criação. Atualmente a maioria das dioceses organizam uma "Vigília de Pentecostes”, às vezes com a Missa da Vigília, frequentemente com o sacramento da Confirmação, mas com largo espaço para "criação" e "criatividade" devido à falta de orientações suficientes da parte do Missal.

Longe do “desenvolvimento orgânico” [16] querido pelo Padre Reid, devemos, mais uma vez, ver a falta de lógica e continuidade nos trabalhos das comissões. Neste caso, muita coisa foi removida, deixando um vácuo e criando um amplo espaço para a improvisação. Talvez mais do que em qualquer outro dia do ano litúrgico, as práticas da Vigília de Pentecostes nos diferentes lugares – dioceses e paróquias -, mostram uma diversidade que é uma lembrança de uma das leituras oferecida a escolha dos celebrantes: a de Babel.

Bibliografia

  • SCHUSTER, I., Liber Sacramentorum. Notes historiques et liturgiques sur le Missel romain. Tome IV : Le baptême dans l’Esprit et dans le feu (la Sainte liturgie durant le cycle pascal). Bruxelles, 1939.
  • GUERANGER P., L’année liturgique, Tome ii: Le Temps pascal, Mame & Fils, Paris, 1920,
  • PARSCH, P., The Church’s Year of Grace, Liturgical Press, Collegeville, 1953.
  • REID A., The Organic Development of the Liturgy, St Michael’s Abbey Press, Farnborough 2004

Notas



[3] Schuster, I., Liber Sacramentorum. Notes historiques et liturgiques sur le Missel romain. Tome IV : Le baptême dans l’Esprit et dans le feu (la Sainte liturgie durant le cycle pascal). Bruxelles, 1939.

[4] Tertuliano, De Baptismo 8, 1.

[5] Epist. ad Himerium cap. 2 : Patrologia Latina vol. XIII, col. 1131B-1148A

[6] Epist. XVI ad universos episcopos per Siciliam constitutos : P.L. LIV col. 695B-704A

[7] Durante a leitura das profecias do Sábado Santo, os sacerdotes terminavam os ritos de preparação dos catecúmenos ao Batismo, o que tomava um certo tempo.  Daí o comentário de Dom Guéranger sobre a relativa brevidade das profecias.

[8] GUERANGER P., L’année liturgique, Tome ii: Le Temps pascal, Mame & Fils, Paris, 1920, p. 260

[9] PARSCH, P., The Church’s Year of Grace, Liturgical Press, Collegeville, 1953.

[10] A rubrica especifica: nos lugares onde não há pia batismal, depois da sexta profecia com sua oração, o celebrante tira a casula e se prosterna com os ministros diante do altar.  E, estando ajoelhados todos os outros, cantam-se as ladainhas.  São cantadas por dois cantores no meio do santuário, as dois coros respondem juntos.  Ao verso Peccatores, te rogamus o padre e os ministros levantam-se e vão à sacristia, e vestem paramentos vermelhos.

[11] Citamos novamente a rubrica: Ao fim das ladainhas, canta-se o Kyrie Eleison para a missa, repetindo-o conforme o costume.  Durante esse tempo o celebrante e os ministros vão para o altar e fazem a confissão. Ao fim do Kyrie Eleison se entoa o Gloria in excelsis Deo e tocam-se os sinos.

[12] Esse documento, catalogado Codex Regina 337, foi recentemente publicado pela Biblioteca Vaticana. É um manuscrito do século VIII que descreve a liturgia papal em Latrão, depois da organização da liturgia pelo Papa São Gregório Magno e seus sucessores, até o tempo do papa Adriano I (+795), que enviou o manuscrito ao imperador Carlo Magno a fim de estabelecer a liturgia romana em todo o seu império. O Codex Regina 337 foi analisado por H.A. Wilson no livro The Gregorian sacramentary under Charles the Great, publicado pela Henry Bradshaw Society em Londres em 1915.

[13] Atos 19, 1-8.

[14] João, 14, 15-21.

[15] 03 de abril de 1969.

[16] Alcuin Reid OSB, The Organic Development of the Liturgy, St Michael’s Abbey Press, Farnborough 2004.

domingo, 17 de maio de 2015

Ajude o Instituto Cristandade, comprando os Paramentos Imaculada Conceição

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Recebemos o e-mail abaixo e publicamos para os amigos, para que ajudem.

"Olá, Salve Maria!

Através desse email quero expressar minha gratidão ao apostolado virtual Salvem a Liturgia que muito tem ajudado a Igreja Católica. Desejo que Nossa Senhora Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil abençoe esse blog hoje e sempre.

Também gostaria de pedir a ajuda de uma publicação sobre uma moça que está fazendo paramentos litúrgicos aqui em Presidente Prudente, SP.  A loja se chama Paramentos Imaculada. A responsável pela confecção é nossa amiga Aline Pomin, do Instituto Cristandade, que, mesmo muito doente, com dedicação aprendeu a confeccionar vestes para a Liturgia. Não possuindo uma máquina para bordar está bordando à mão.

Ela me pediu para enviar esse email este foi seu comentário a mim:  "Comecei a confeccionar os paramentos com o intuito de ajudar a Igreja Católica e de ajudar o Instituto Cristandade. Tenho como objetivo ajudar a manter a Tradição através da beleza dos paramentos."


Marlon Victor

Contatos: Página do Facebook: Paramentos Imaculada Conceição: https://www.facebook.com/pages/Paramentos-Imaculada-Concei%C3%A7%C3%A3o/803277359739453?fref=ts
telefone: (18) 98173-3670 -  Aline Pomin"

quinta-feira, 7 de maio de 2015

O que a Forma Extraordinária significa para mim

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Encontro-me em circunstâncias privilegiadas em relação à maior parte dos fiéis portugueses. A crise em Portugal obrigou-me a emigrar e, graças a tal, tenho a possibilidade de participar na vetus ordo semanalmente. É sobre a minha vivência da vetus ordo que vos quero falar, sobretudo aos leitores portugueses que, por um motivo ao outro, se vêm privados da FE em terras lusitanas. Desde já o seguinte caveat: não pretendo ser polémico, nem pretendo demonstrar que a novus ordo é pior que a vetus ordo; simplesmente quero apresentar alguns motivos porque esta última me ajuda a viver melhor a nossa Fé. Irei-me focar muito sumariamente em apenas três aspectos. As palavras seguintes serão as minhas opiniões – fruto de meditação, mas mesmo assim opinião, portanto têm o valor que têm.

http://www.effedieffe.com/images/stories/vetus_ordo.jpg


Próprios

Posso contar nos dedos a quantidade de vezes que ao longo dos anos ouvi os próprios nas várias Missas paroquiais em que participei em Portugal. Que existam lugares onde se utilizem, não duvido. É falha da novus ordo? Não, pois os próprios estão lá; se se optam por outros textos, os motivos que levam a tal já me são alheios.
Não existindo a possibilidade de escolher outros textos que não os próprios que vêm no missal (que por sua vez vêm dum livro chamado Graduale), a vetus ordo coloca-nos obrigatoriamente em contacto com estes. Os próprios falam-nos da festa que se está a celebrar, seja dum santo seja duma efeméride. Ajudam-nos a sentir cum Ecclesiae; colocam-nos na boca as palavras através das quais a Igreja entende o acto que se está a concretizar. Devido aos próprios toda a Missa está impregnada das Escrituras; são raros os casos em que os próprios não são textos retirados das Escrituras (os casos excepcionais que me ocorrem de momento nem são no missal romano, mas sim no bracarense).
Os próprios põem-nos em contacto com o Saltério pois são maioritariamente compostos por versos tirados dos Salmos. Enquanto que a exposição principal aos Salmos nas celebrações da novus ordo se dá aquando do Salmo responsarial (porque se opta muitas vezes por ignorar os próprios), na vetus ordo toda a celebração é intercalada com versos dos Salmos. Encontramos os Salmos no Intróito, no Gradual, no Tracto, no Aleluia, no Ofertório e na antífona da Comunhão. É também através dos próprios que a Igreja nos ajuda a interpretar as Escrituras.
Veja-se, por exemplo, o caso dos próprios da primeira Missa do Natal. O Intróito é  Sl 2, 7.1: Dominus dixit ad me: Filius meus es tu; ego hodie genui te. Quare fremuerunt gentes, et populi meditati sunt inania? A Igreja põe estes versos do Salmo 2 na boca de Cristo; dá-lhes uma interpretação cristológica. O Gradual vai buscar o Sl 109, 3.1 Tecum principium in die virtutis tuæ in splendoribus sanctorum: ex utero, ante luciferum, genui te. Dixit Dominus Domino meo: Sede a dextris meis, donec ponam inimicos tuos scabellum pedum tuorum e dá-lhes também uma interpretação cristológica (interpretação essa que já o próprio Jesus tinha dado, como podemos atestar nos Evangelhos). O Ofertório apresenta Sl 95, 11.13 Lætentur cæli, et exsultet terra;
commoveatur mare et plenitudo ejus;  a facie Domini, quia venit
. Mais uma vez a Igreja, utilizando este verso na sua Liturgia, mostra-nos que ele se refere a Cristo e ao Seu nascimento.


Repetição

Umas das coisas que talvez salte à vista (e aos ouvidos) de quem participa pela primeira na vez na Missa segundo a vetus ordo são as repetições. São as vezes que o sacerdote se vira do altar para a congregação; o tríplice bater no peito durante o Confiteor; os vários ósculos que o sacerdote faz ao altar; os vários sinais da cruz; as varias genuflexões;… Apesar da vetus ordo ser o rito menos “floreado” dos ritos latinos (o rito bracarense, como praticamente todo o uso medieval, tem bastante mais “ritual”), é notoriamente mais ritualizado que a novus ordo. Mas porque dar importância às repetições? Não são as repetições maçadoras ou supérfluas? Creio que não; antes pelo contrário, creio que são bastante pedagógicas para o crente que participa na Missa e ajudam melhor a entrar no mistério. Acredito que quem esteja atento ao que se passa durante a celebração é levado a questionar-se sobre o porquê da repetição de certos gestos e palavras. A Igreja, na sua sabedoria, instrui os seus filhos através da repetição. Estas repetições de gestos e palavras são, entre outras coisas, chamadas de atenção; obrigam-nos a focar no que se está a fazer ou chamam-nos de volta se por acaso nos tenhamos distraído. Quantas vezes não me distraí após o Pater Noster e é a segunda ou terceira repetição de Domine non sum dignus que sou chamado de volta à realidade. Nenhum gesto é supérfluo; tudo tem o seu significado e cabe a nós descobri-lo e apropria-lo ao invés de ceder a soberba e dizer “não entendo a razão de ser disto, logo deve estar errado”. Diz Origenes que o corpo é ícone da alma, portanto a postura e os gestos fazem parte da oração. Os Padres da Igreja dão testemunho de como o corpo é importante na oração (os Nove Modos de Orar de S. Domingos atestam a este facto); de facto a vetus ordo acaba por envolver mais a corporalidade da oração através de gestos que já nos vem de tempos remotos.

Participação

Após regressar a Igreja ouvi falar muito de participação activa e era bombardeado com opiniões contraditórias do que isso significaria.
Foi sobretudo o frequentar a vetus ordo que me ensinou a participar na Liturgia, seja em que rito ou forma for. Participação activa no seu sentido mais pleno é participar na Paixão de Cristo, completando o que falta nas Suas tribulações (cf Col 1, 24). Assistir a Missas solenes ajudou bastante para esclarecer qual o papel dos leigos na Missa (uso aqui a palavra assistir não no sentido de espectador, como é usual entender-se quando se critica que “não se assiste à Missa”, mas no sentido de quem ajuda, de quem dá apoio, que é o verdadeiro sentido). Para quem assiste pela primeira vez a uma Missa solene, parecerá certamente tudo uma confusão. Estão várias coisas a acontecer ao mesmo tempo: o sacerdote e os seus ministros estão a rezar orações que lhes são próprios, o coro está a cantar algum dos próprios da Missa do dia, os leigos estão a fazer alguns gestos (ou até a acompanhar o coro se souberem) ou estão “apenas” receptivos, atentos ao que se passa. Mas o que é à primeira vista uma confusão revela-se de facto uma sinfonia. Cada grupo está a exercer o seu munus, cada qual tem o seu papel a desempenhar na Liturgia.
Inicialmente seguia tudo pelo missal. E apesar de ainda recorrer por vezes ao missal (sobretudo para ver os próprios), com o passar do tempo tenho-me familiarizado mais e mais com a estrutura da Missa em si. A familiarização com a estrutura da Missa ajuda a que eu junte as minhas orações pessoais às do sacerdote nos momentos em que os leigos nada têm a responder durante a Missa. Vou aprendendo a trazer para a Liturgia a minha vida, a oferecê-la aquando do Ofertório para que aquilo que o sacerdote, através de Cristo, realiza ao oferecer o pão e vinho se venha a realizar em mim, para que o Cristo que se torna presente sobre o altar se vá tornando presente em mim. Nas orações do Canon junto as minhas intenções às do sacerdote, para que ele as apresente sobre o altar. 

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Termino por aqui este breve resumo, deveras incompleto, da minha participação na vetus ordo. Teria muito mais a dizer sobre outros aspectos, mas creio que outros já o terão dito e melhor do que eu alguma vez o poderia dizer. Desejo apenas que este testemunho acenda nalgum leitor português o desejo de descobrir o seu património litúrgico, de não o descartar logo a partida, e qual pai de família aprenda a tirar deste tesouro coisas novas e velhas.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

O Ofício romano do séc. VI aos nossos dias. Continuidade ou ruptura? Um ensaio de avaliação crítica

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Recebi do Pe. Jean-Pierre Herman e sacerdote da diocese de Namur (Bélgica).  Ele nasceu em 1959.  Exerceu até hoje diversos ministérios em Europa, nos Estados Unidos e no Brasil.  É autor de diversos artigos em língua francesa sobre a história da liturgia.

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O Ofício romano do séc. VI aos nossos dias

Continuidade ou ruptura?

Um ensaio de avaliação crítica

Pe Jean-Pierre Herman


Ofício Romano. Um breve percurso histórico

Em 1971 apareceu a primeira edição da Liturgia Horarum juxta ritum romanum[1], que substituiu o venerável Breviarium romanum. Um dos objetivos dos reformadores do Vaticano II era restituir ao Ofício divino seu estatuto de oração do povo de Deus. Hoje as edições em vernáculo do novo Ofício[2] são amplamente difundidas e utilizadas para a oração comunitária e individual dos cristãos, clérigos ou laicos. Pareceu-nos, contudo, conveniente arriscar uma avaliação após quarenta anos de prática. Apresentaremos aqui, portanto, duas questões cruciais: por um lado «O Ofício divino atual é realmente o digno herdeiro do Breviário romano, ou ele marca uma ruptura com uma tradição secular?» e de outro: «Os reformadores, preocupados em restituir ao povo cristão a oração das horas, alcançaram seu objetivo?» A breve reconstrução histórica a seguir ajudar-nos-á a responder.

terça-feira, 31 de março de 2015

Resposta dos Cardeais a Walter Kasper sobre a Família

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Robert Dodaro, OSA (ed.), Remaining in the Truth of Christ, Ignatius Press, San Francisco, 2014, 275p.

Tradução do primeiro capítulo
(texto provisório)


Resumo da argumentação

Robert Dodaro, OSA

Os ensaios deste volume representam a resposta de cinco Cardeais da Igreja Católica Romana e quatro outros especialistas ao livro Evangelho da Família, publicado anteriormente este ano pelo Cardeal Walter Kasper. O livro de Kasper contém o discurso feito por ele, durante o consistório extraordinário de cardeais celebrado nos dias 20-21 de fevereiro de 2014. Um tema importante daquele encontro foi a preparação das duas sessões do Sínodo dos Bispos, convocadas pelo Papa Francisco para 2014 e 2015, com o tema “Desafios Pastorais para a Família no Contexto da Evangelização”. Quase no final de sua colocação o Cardeal Kasper propôs uma mudança no ensinamento e na disciplina sacramental da Igreja, que permitisse, em casos limitados, que católicos divorciados e recasados civilmente fossem admitidos à comunhão eucarística, depois de um período de penitência. Ao defender esta proposta, o cardeal usou como argumento a prática primitiva dos cristãos assim como a longa tradição ortodoxa oriental de aplicar a misericórdia às pessoas divorciadas, dentro de uma fórmula na qual as segundas núpcias seriam “toleradas” – uma praxe geralmente chamada pelos ortodoxos de oikonomia. Kasper espera que seu livro venha a fornecer  “uma base teológica para uma ulterior discussão entre os cardeais”, e que a Igreja Católica encontre um caminho de harmonizar “fidelidade e misericórdia em sua prática pastoral”.
A finalidade da presente obra é responder ao convite, feito pelo Cardeal Kasper, de uma ulterior discussão. Os ensaios publicados neste volume refutam a sua proposta específica de uma forma católica de oikonomia,para alguns casos de pessoas divorciadas e civilmente recasadas, tendo como fundamento o fato de que tal proposta não pode ser harmonizada com a doutrina católica da indissolubilidade do matrimônio e que, com isto, ela fortalece uma concepção equivocada seja de fidelidade, seja de misericórdia.
Depois deste capítulo introdutório, o volume examina os principais textos bíblicos a respeito do divórcio e do segundo casamento. O capítulo seguinte trata do ensinamento e da praxe que predominavam na Igreja primitiva.  Em nenhum dos dois âmbitos, seja bíblico, seja patrístico, os autores encontraram fundamento para o tipo de “tolerância” de casamentos civis após divórcio como advogado por Kasper.  Em seguida, o capítulo quarto examina o fundamento histórico e teológico da praxe ortodoxa oriental da oikonomia, enquanto o quinto capítulo traça o plurissecular desenvolvimento da atual doutrina católico romana a respeito do divórcio e do segundo casamento. A urgência destes capítulos se torna clara com a afirmação do Cardeal Kasper de que com relação à  doutrina da indissolubilidade do matrimônio, “a tradição em nosso caso não é de forma alguma convergente, com se costuma afirmar”, e que “há questões históricas e opiniões discordantes de sérios especialistas, que não podem ser facilmente desconsideradas”. Dada a gravidade da questão doutrinal envolvida, estas suposições históricas exigem uma resposta acadêmica.
À luz dos dados bíblicos e históricos desta primeira parte deste volume, os autores dos quatro capítulos restantes reafirmam o arrazoado teológico e canônico a favor de se manter a coerência entre a doutrina e a disciplina sacramental católicas a respeito do matrimônio e da sagrada comunhão. Assim, os estudos contidos neste livro levam à conclusão que a longa fidelidade da Igreja à verdade do matrimônio constitui o fundamento irrevogável de sua misericordiosa e amorosa resposta ao indivíduo que seja divorciado e civilmente recasado. Sendo assim, este livro contesta a premissa de que a doutrina tradicional e a prática pastoral contemporânea se encontram em contradição.
A finalidade deste primeiro capítulo é resumir e salientar os principais argumentos contra a proposta de Kasper, tais como são apresentados neste livro.

Divórcio e segundo casamento nas Sagradas Escrituras
  
O Novo Testamento documenta o fato de o Cristo condenar um outro casamento após o divórcio como sendo adultério. Nas passagens do Evangelho nas quais se trata do divórcio, a condenação de um outro casamento é sempre absoluta (veja Mt 5, 31-32; 19, 3-9; Mc 10, 2-12; e Lc 16, 18; cf. Lc 5, 31,32). São Paulo repete este mesmo ensinamento e insiste que não é seu, mas de Cristo: “Aos que estão casados, tenho uma ordem. Aliás, não eu, mas o Senhor” (1 Cor 7, 10; ênfase nossa). O texto bíblico chave de Gênese 2, 24 (“Por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe, e se une à sua mulher, e eles dois se tornam uma só carne”) estabelece a verdade de que o casamento é entre um homem e uma mulher, de que ele só pode acontecer com alguém de fora da família de origem da pessoa, de que o matrimônio requer intimidade física e proximidade, e de que tem como resultado que os cônjuges se tornam “uma só carne”. Que este texto representa a verdadeira definição cristã do matrimônio torna-se claro quando Jesus o cita em sua resposta aos fariseus dizendo que Moisés teria permitido o divórcio como uma concessão “por causa da vossa dureza de coração... Mas não, no início não era assim” (Mt 19, 8; cf. Mc 10, 5-6; ênfase nossa). E em sua explicação aos fariseus, nesta ocasião (Mc 10, 6-9), Jesus faz alusão tanto a Gênesis 1, 27 (do princípio da criação, “E Deus criou o homem à sua imagem,... e os criou homem e mulher”) como a Gênesis 2, 24. Tomados juntos, estas duas passagens descrevem o casamento no estado original como Deus o criou. O que Jesus quer ensinar aqui é que a indissolubilidade do matrimônio entre um homem e uma mulher  está fundamentada em uma lei divina, que está acima das normas judaicas contemporâneas a respeito do divórcio: “Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar” (Mc 10, 9).

As cláusulas de exceção no evangelho de Mateus

Se o ensinamento de Jesus a respeito do divórcio e do segundo casamento é tãoclaro, como devemos interpretar as duas passagens no evangelho de Mateus que parecem permitir o divórcio em caso de porneia (Mt 5, 32; 19, 9)? Dois autores neste volume enfrentam a questão. Paul Mankowski, SJ, sugere, com base na filosofia, que porneia não diria respeito a adultério, como se supõe comumente, mas a incesto, e talvez também à poligamia (um prática então comum entre os gentios). Neste caso, Mankowski argumenta que estas duas passagens representam “condições dirimentes” na medida em que não se trata de exceções à regra, mas de condições sob as quais a regra não se aplica, dado que a separação entre um homem e um mulher em qualquer um destes dois casos não constitui um “divórcio”, não havendo um matrimônio real a ser dissolvido.
John Rist, em seu ensaio neste volume, oferece uma explicação diferente. Ele interpreta porneia nestas passagens como “adultério” por parte da mulher. A lei judaica não somente permitia o divórcio neste caso, como a exigia (Dt 24, 4; Jer 3,1). Nas sociedades antigas, hebreia e pagã, o adultério por parte da mulher era um risco de introduzir filhos de estranhos no patrimônio familiar, já que a propriedade passava do pai para seus herdeiros. Jesus rejeita claramente esta lógica, que ele diz Moisés ter permitido por causa de “vossa dureza de coração”, e indica o mandamento divino original sobre o matrimônio como um compromisso para toda a vida. Por isto, o segundo casamento depois do divórcio não é permitido por quanto o outro esposo continue vivo.

Os dados patrísticos

O Cardeal Kasper procura fundamentar o seu argumento na praxe da Igreja primitiva. No entanto, os poucos exemplos citados por ele não são capazes de sustentar sua conclusão, e a vivência vastamente documentada da Igreja primitiva a contradiz totalmente. Sua apresentação dos dados patrísticos é breve; ele envia seus leitores a três estudos publicados a respeito do divórcio e do segundo casamento na Igreja primitiva. Mesmo assim, fica claro que ele se baseia, para os casos especificamente mencionados por ele, em um único autor e ignora os contra-argumentos dos outros. Ele diz, por exemplo, que “há boas razões  para presumir” que o cânon 8 do Primeiro Concílio Ecumênico celebrado em Nicéia no ano 325 d. C. confirma uma praxe pastoral já existente na Igreja primitiva “de tolerância, clemência e indulgência” para com os cristãos divorciados e recasados. Mas a evidência histórica para que se tire esta conclusão, que foi apresentada por Giovanni Cereti, é profundamente equivocada, como foi demonstrado há décadas por Henri Crouzel, SJ, e por outro eminente especialista em patrística, Gille Pelland, SJ. No terceiro capítulo deste volume, John Rist revê cuidadosamente este e outros casos e faz notar que Cereti, até o dia de hoje, ainda não conseguiu responder adequadamente às sérias objeções feitas contra seu argumento. Não ficou claro se Kasper tem consciência nível de detalhes das objeções acadêmicas, não somente da interpretação de Cereti sobre este cânon, mas também dos outros textos patrísticos que ele cita. Mesmo assim, o Cardeal os utiliza como provas para sua proposta.
Embora Rist aceite que a solução “misericordiosa” proposta por Kasper não era desconhecida na Igreja primitiva, ele afirma que que tal posição geralmente era condenada como “não escriturística”  e que praticamente nenhum dos escritores que chegaram até nós e consideramos como autoridades a defendem” (pg. 82). Rist acusa Kasper de usar “uma prática infelizmente bastante comum em alguns ambiente acadêmicos”, através da qual “bem poucos casos” são selecionados com a finalidade provar a existência de um costume, mesmo quando as provas históricas contrárias são “esmagadoramente superiores” (pg. 92). Quando esta tática não consegue convencer, acrescenta Rist, argumenta-se então que a insuficiência das provas “ao menos deixa a solução em aberto”. Procedimentos acadêmicos com estes, conclui Rist, “só podem ser condenados como metodologicamente defeituosos”(pg. 92). Pelland apresenta uma ideia semelhante:
Para que se possa falar de uma “tradição” ou “praxe” da Igreja, não é suficiente apresentar um certo número de casos espalhados por um período de quatro ou cinco séculos. Dever-se-ia demonstrar, o quanto possível, que estes casos correspondem a uma praxe aceitada pela Igreja da época. Do contrário, teríamos apenas a opinião de um teólogo (por renomado que seja), ou uma informação a respeito de uma tradição local em um momento específico da história – o que, obviamente, não tem o mesmo peso.

A Doutrina e a Praxe Oriental Ortodoxa

Fora do ambiente limitado de uns poucos especialistas, a praxe ortodoxa oriental da oikonomia tal como é aplicada ao divórcio e às segundas núpcias não é bem compreendida, até mesmo em termos gerais. O Cardeal Kasper cita-a como um estímulo para a Igreja Católica. No capítulo quatro deste volume, o Arcebispo Cyril Vasil’, SJ, oferece uma narrativa rara e atualizada da história, da teologia e do direito por trás desta praxe. Ele identifica a diferença fundamental entre a posição ortodoxa oriental e posição católica sobre o divórcio e segunda união em uma divergência da compreensão de Mateus 5, 32 e 19, 9. Historicamente, as autoridades ortodoxas interpretaram porneia  como adultério e ler estas passagens como apresentando uma exceção à proibição de Cristo sobre o divórcio. As interpretações católicas, por outro lado, sustentam que Cristo pretendia o vínculo matrimonial permanecesse intacto mesmo se, por causa do adultério, o casal devesse se separar.
Durante o primeiro milênio a Igreja, tanto no ocidente como no oriente, resistiu às tentativas de imperadores de introduzir o divórcio e a segunda união no direito e na praxe eclesiástica. O Concílio Trulano de 692 marca o primeiro sinal de a Igreja aceitar motivos de divórcio e de novo casamento (motivos, no entanto, que podem ser resumidos na ausência ou morte presumida de um dos esposos). Uma mudança ainda maior acontece em 883 quando sob o Patriarca Fócio I de Constantinopla um código de leis eclesiásticas incorpora uma lista muito mais longa de razões que permitem o divórcio e um novo casamento. Um outro fator que complica ainda mais é o aparecimento em 895 do Imperador Bizantino Leão VI que, para obter o reconhecimento legal de seu casamento, precisa da bênção da Igreja. Por volta de 1086 no Império Bizantino, somente os tribunais eclesiásticos tem a permissão de investigar os casos matrimoniais, e eles devem fazê-lo com base no direito civil e imperial que permite o divórcio e o novo casamento para um número grande de razões que muito além do adultério. Sendo assim, a partir do século nono a Igreja Oriental cai progressivamente debaixo da influência dos líderes políticos bizantinos, que convencem os bispos a aceitarem o divórcio liberalizado e as regras de um novo matrimônio. O Patriarca Aléxio I de Constantinopla (1025-1043) permitiu pela primeira vez um cerimônia eclesial (um bênção) para segundas núpcias no caso de uma mulher que tenha divorciado um marido adúltero. Com o esforço missionário que levou o cristianismo a outras nações, estes e outros costumes e éticas matrimoniais semelhantes se desenvolveram dentro das Igrejas Ortodoxas naquelas terras.
O Arcebispo Vasil’ ilustra estes desenvolvimentos olhando de perto a Rússia, Grécia, e o Oriente Médio, e observando as semelhanças e diferenças entre aquelas igrejas. Ele nota a falta de uma base coerente – ou até mesmo de uma terminologia comum – para que se faça uma comparação da lógica que está por trás da praxe teológica, canônica e pastoral associada com aoikonomia entre as diversas Igrejas Ortodoxas. Este contexto confuso explica, em parte, a dificuldade de se encontrar escritos teológicos maduros a respeito da oikonomia entre os escritores Ortodoxos Orientais. Vasil’ conclui  que não é possível determinar um “posição Ortodoxa” uniforme a respeito do divórcio e das segundas núpcias, e por consequência, a respeito daoikonomia. Ele teme que, na melhor das hipóteses, possa se falar de praxes dentre de uma Igreja Ortodoxa específica – embora nem mesmo neste caso a praxe seja muito consistente – ou pode-se falar a respeito da opinião comum a alguns bispos, ou do ponto de vista de um teólogo específico. Existem claras discordâncias entre os bispos e teólogos ortodoxos a respeito da teologia e do direito a respeito desta matéria.
No coração do problema encontra-se o problema da indissolubilidade do matrimônio. A teologia católico romana, seguindo Santo Agostinho, vê a indissolubilidade no sentido seja legal, seja espiritual como uma aliança (sacramentum) que vincula os esposos mutuamente em Cristo por quanto eles viverem. No entanto, os autores ortodoxos evitam o sentido legal desta aliança e veem a indissolubilidade  do casamento em termos de uma aliança espiritual. Como já foi afirmado, as autoridades ortodoxas geralmente interpretam Mateus 5, 32 e 19, 9 como uma permissão de divórcio em caso de adultério, e elas insistem que existem fundamentos patrísticos para fazê-lo. Se existe um ponto de vista comum entre os bispos e os teólogos do oriente ortodoxo, é este. Mas daqui em diante, os autores ortodoxos começam a tomas posições diferentes. Por isto, enquanto alguns sustentam a posição relativamente estrita de que o divórcio e as segundas núpcias são permitidos somente em casos de adultério, alguns, como John Meyendorff, sugerem que a Igreja possa conceder um divórcio baseada no fato de que o casal se recusou de aceitar a graça que lhes foi conferida no sacramento do matrimônio. O divórcio eclesiástico, no ponto de vista de Meyendorff , é simplesmente o reconhecimento da Igreja de que esta graça sacramental foi recusada. Paul Evdokimov modifica esta tese , afirmando que já que o amor recíproco constitui a imagem do sacramento, um fez que o amor se esfria, as comunhão sacramental, que é expressada pela união sexual do casal, se perde. Como resultado, a relação se deteriora numa forma de “fornicação”. Outros escritores ortodoxos falam da “morte” moral ou  espiritual do casamento e a relacionam à morte física de um dos cônjuges, com a consequente dissolução do vínculo que torna um novo casamento possível.
À luz da compreensão que estes autores da indissolubilidade, John Rist pergunta que relação os ortodoxos encontram entre o primeiro e o segundo casamento no caso de divórcio. Rist acredita que seja difícil responder a esta pergunta de forma coerente porque a visão que os ortodoxos possuem de indissolubilidade deixa o papel de Deus na sacramento ambíguo. Se a ação má de qualquer um dos cônjuges (adultério, abandono, etc.) pode realmente destruir o vínculo, de tal forma que um segundo matrimônio deva ser celebrada com menos cerimônia e até mesmo com um espírito penitencial, então existem dois graus de casamento no pensamento ortodoxo? Considerando o fato que a teologia católica indica um papel claro desempenhado por Deus na indissolubilidade do vínculo matrimonial, Rist sugere que seriam ainda mais difícil para os católicos encontra o sentido teológico de uma segunda núpcia (uma observação que trás à mente a observação do Cardeal Kasper sobre “uma disposição de tolerar algo que, em si mesmo, é inaceitável”).

A doutrina e a praxe católica na idade média

No quinto capítulo o Cardeal Walter Brandmüller esboça um breve apanhado do ensinamento da Igreja ocidental a respeito do casamento e do divórcio desde o sínodo de Cartago (407) até o concílio de Trento (1545-1563) que completa a narrativa do Arcebispo Vasil’ do desenvolvimento da Igreja oriental. Brandmüller nota que até mesmo durante a evangelização dos povos franco-germânicos, entre os quais o costume matrimonial autóctone estavam em desacordo com as normas cristãs, os bispos agindo através dos concílios eclesiásticos estabeleceram gradualmente o princípio da indissolubilidade do matrimônio. A pesar deste desenvolvimento, Brandmüller reconhece que houve ocasiões na Idade Média nas quais os sínodos e os concílios eclesiásticos permitiram um segundo casamento após o divórcio, é famoso, por exemplo, o caso do Rei Lotário II (835-869). No entanto, ele examina alguns destes casos e encontra neles um contexto de negociações, tais como a aplicação de uma pressão política externa, o que enfraquece o significado doutrinal das decisões tomadas por tais concílios. Ele defende que o resultados dos concílios gerais e dos sínodos particulares podem encarnar um paradosis  ou tradição “se eles mesmos corresponderem às exigências de uma autêntica tradição tanto no âmbito da forma como do conteúdo” (p. 141). Assim, durante a Idade Média, com também na era patrística, a existência esparsa de exceções altamente duvidosas àquilo que é o ensinamento e a prática costumeira da Igreja com relação à indissolubilidade do matrimônio é muito mais indício de anomalias do que de tradições paralelas ou alternativas que possam ser eventualmente recuperadas na atualidade.

O atual ensinamento católico

O atual ensinamento da Igreja a respeito do divórcio, segunda união e Santa Comunhão pode ser apreendido de forma bastante concisa concentrando-se em partes da Exortação Apostólica Familiaris consortio (parágrafo 84), publicada por São João Paulo II em 1981, e Sacramentum caritatis (parágrafo 29) publicada por Papa Bento XVI em 2007. Estes pontos são sumariamente apresentados pelo Cardeal Gerhard Ludwig Müller no sexto capítulo deste volume. Este último documento desmente a afirmação de que a doutrina da Igreja relega os católicos divorciados e recasados a uma pertença de segunda categoria. Bento XVI exorta expressamente que eles “cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos”. O Cardeal Kasper argumenta que esta afirmação demonstra um amolecimento da atitude para com os católicos divorciados e recasados e uma tendência de revisão da atual disciplina. Mas o Cardeal Müller explica, citando a Familiaris consortio (n. 84), a natureza irreformável do ensinamento a respeito dos fieis cujo “estado e condições de vida contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e atuada na Eucaristia”. O Cardeal continua:
A reconciliação através da confissão sacramental, que abre o caminho para a recepção da Eucaristia, somente pode ser concedida no caso de arrependimento sobre o que aconteceu e que estão “dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimônio” (pg. 155).
Mesmo assim, como salienta Müller, longe de tratarem os divorciados e civilmente recasados com um frieza condenatória e distância, os pastores são obrigados pelo magistério “a acolher as pessoas em situações irregulares com abertura e sinceridade, a estar ao seu lado com simpatia e disposição de ajudar, e a fazer com que eles tenha consciência do amor do Bom Pastor” (pg. 165).

Casamento e a pessoa individual hoje

O Cardeal Müller retorna a um tema que já havia sido introduzido em um ensaio anterior deste volume por John Rist: a natureza da pessoa individual que procura o casamento nos dias de hoje. Ambos autores levantam a questão das intenções ou da “mentalidade” dos esposos antes, durante e depois da troca de consentimento matrimonial. O que eles compreendem como sendo matrimônio? Eles compreendem que o matrimônio é indissolúvel, ou eles somente querem experimentá-lo para ver se vai dar certo? Como eles compreendem a questão da geração de filhos neste mundo? Eles compreendem que a abertura à geração de filhos é necessária para um casamento sacramental válido? E, ainda mais importante, dada a superficialidade dos relacionamentos nos dias de hoje, os jovens católicos são capazes de compreender a linguagem da Igreja a respeito dos sacramentos, da fidelidade, da indissolubilidade, e da abertura à geração da prole?
John Rist também se preocupa que as pessoas estejam tomadas pelo conceito de Si-mesmo “sequencial” ou “serial” que foi desenvolvido na filosofia contemporânea. Este conceito estimula uma mudança na ideia tradicional de natureza humana; especificamente ele promove uma visão na qual a identidade pessoal muda durante o tempo de vida de uma pessoa. Rist observa que “muitos têm dificuldade em crer que são a mesma pessoa da concepção até a morte” porque “estão sujeitos a variações contínuas e psicologicamente radicais ao longo de suas vidas” (pg. 67). Sendo assim, estas pessoas poderiam concluir “eu não sou a mesma pessoa que eu era quando me casei, e também a minha mulher não é mais a mesma pessoa”, o resultado disto é uma crença de que o próprio casamento se tornou “um relacionamento fictício” (pg. 68).
O Cardeal Müller concede que “a mentalidade atual é bastante oposta à compreensão cristã de casamento, no que tange a sua indissolubilidade e a abertura à prole”, e que, como consequência, “os casamentos hoje me dia são provavelmente inválidos com uma frequência maior do que antigamente”. Ele sugere “a avaliação da validade do casamento é importante e pode ajudar a resolver problemas” (pg. 157).
Mesmo assim, numa Igreja onde o termo “profético” se tornou uma palavra chave nos movimentos que se opõem abertamente à corrente cultural dominante, Müller convida a Igreja a se opor a “uma resignação pragmática  ao supostamente inevitável” e a proclamar “o evangelho da santidade do matrimônio” com “profética simplicidade” (pgs. 160-161); ênfase nossa). A dificuldades de aceitar o ensinamento de Cristo a respeito da santidade do matrimônio foram primeiro notadas, não pelo Sínodo dos Bispos, mas pelos próprios apóstolos que, quando ouviram este ensinamento diretamente do Senhor, responderam com incredulidade: “se tal é a condição do homem a respeito da mulher, é melhor não se casar”! (Mt 19, 10). No entanto, tanto o Cardeal Müller como Paul Mankowski, SJ, em seus respectivos ensaios neste volume, reconhecem que juntamente com este “duro” ensinamento a respeito da indissolubilidade do matrimônio, Cristo também prometeu, nas palavras de Mankowski, “um novo e superabundante derramamento da graça, do auxílio divino, de tal forma que ninguém, por mais frágil que seja, pense se impossível realizar a vontade de Deus”(pg. 63).

Misericórdia e as normas da Igreja

Mas, o que dizer então da falência do relacionamento conjugal, da separação e do divórcio?  Será que o ensinamento e a prática atual da Igreja a respeito dos católicos divorciados e recasados demonstra a qualidade de misericórdia que Jesus mostrou aos pecadores? O Cardeal Müller responde que, para se evitar uma visão incompleta da misericórdia de Jesus devemos olhar para a sua vida e seu ensinamento como um todo. A Igreja não pode apelar para a “misericórdia divina” (pg. 163) como uma forma de descartar os ensinamentos de Jesus que ela achar difíceis.
Toda a economia sacramental é uma obra da misericórdia divina, e não pode simplesmente ser varrida de lado fazendo-se apelo à mesma misericórdia. Um apelo objetivamente falso à misericórdia corre também o risco de trivializar a imagem de Deus, dando a entender que Deus não teria outra alternativa senão perdoar. O mistério de Deus inclui não somente sua misericórdia, mas também sua santidade e sua justiça. (pg. 163)
No oitavo capítulo deste volume, o Cardeal Velásio De Paolis, C. S., reitera o ponto de vista  do Cardeal Müller: “Muitas vezes a misericórdia é apresentada com sendo oposta à lei, até mesmo a lei divina. Mas colocar a misericórdia de Deus em oposição à sua própria lei é uma contradição inaceitável” (pg. 203). De Paolis nota que Kasper não propõe “misericórdia” como um caminho para a Comunhão Eucarística para todos  os católicos divorciados e civilmente recasados, mas somente para os que preencham certas condições. Ele é da opinião que o raciocínio por trás das condições de Kasper é ilógico. Ele se pergunta o que haveria no casamento civil que o qualifique como moralmente mais saudável do que a coabitação. A Igreja não considera o casamento civil após o divórcio como sendo um casamento válido. Sendo assim, os católicos que, nesta situação, se encontram casados de acordo com as leis do Estado não fazem com que o seu comportamento seja moralmente mais respeitável do que um casal vive junto fora do casamento. Ao argumento de Kasper segundo o qual a educação dos filhos de esposos em um casamento civil faz deste casamento uma opção moral melhor ( um “mal menor”) do que outras alternativas, De Paolis responde que matrimônios fictícios desgastam os princípios básicos do matrimônio e da família assim como a moralidade sexual em geral, e ele se pergunta que tipo de educação moral o casal nestas condições possa dar aos seus filhos:
O respeito pela lei moral que proíbe uma vida marital entre pessoas  que não são casadas não pode admitir exceções. A dificuldade que alguém encontre em respeitar a lei moral não autoriza esta pessoa de dar volta a violar a mesma lei moral. (pg. 195).

Disciplina e doutrina

O Cardeal De Paolis também observa que “frequentemente se faz a distinção entre doutrina e disciplina para então se dizer que na Igreja a doutrina não muda, enquanto a disciplina muda” (pg. 206). No entanto, uma mudança na prática da Igreja que tenha em vista que católicos divorciados e civilmente recasados recebam a eucaristia implica necessariamente uma mudança doutrinal. Que ninguém se iluda a este respeito. De Paolis salienta que, na teologia católica, a “disciplina” se refere a algo mais amplo do que as leis humanas. Por exemplo, “a disciplina inclui a lei divina, como os mandamentos, que não estão sujeitos à mudança, embora não sejam diretamente de natureza doutrinal... A disciplina com frequência inclui tudo aquilo ao qual o crente deve se sentir comprometido em sua vida se desejar ser um discípulo fiel de Nosso Senhor Jesus Cristo” (pg. 206). Por isto, a distinção entre a disciplina dos sacramentos e a doutrina católica não é tão clara como muitos pensam que seja ou gostariam que fosse.
No sétimo capítulo deste volume, o Cardeal Carlo Caffarra salienta as razões pelas quais a proposta de Kasper necessariamente envolve uma mudança doutrinal e não somente na disciplina sacramental. Ele nota que de acordo com “a tradição da Igreja, fundada nas Escrituras (veja 1Cor 11, 28), ... a comunhão com o Corpo e com o Sangue do Senhor requer que os que dela participarem não encontrem em contradição com o que recebem”. O Cardeal conclui que “o status [ênfase no original] do divorciado e civilmente recasado está em contradição objetiva com o vínculo de amor que une Cristo e a Igreja, que é significado e atualizado na Eucaristia”(pg. 175).
Caffarra explica que na visão católica, o matrimônio consiste num vínculo que não é simplesmente moral, mas ontológico, porque o Cristo é integrado dentro matrimônio. “A pessoa casada está ontologicamente... consagrada a Cristo, conformada a ele. O vínculo conjugal é colocado em existência pelo próprio Deus, através do consentimento dos dois (esposos)”. Caffarra concede que, se o vínculo marital fosse somente moral e não ontológico, ele poderia ser dispensado. No entanto, dada a natureza ontológica do vinculo sacramental, “o cônjuge permanece integrado em um tal mistério, mesmo se o cônjuge, por uma decisão posterior, atacasse o vínculo sacramental entrando em um estado de vida que o contradiga”(pg. 175; ênfase no original). Como consequência, a admissão de católicos divorciados e recasados ao sacramento da penitência e à Eucaristia significaria não somente uma mudança na prática sacramental e na disciplina; ela introduziria uma contradição fundamental na doutrina católica a respeito do matrimônio, e por consequência também  a respeito da Eucaristia.
Caffarra vê na proposta de Kasper outras consequências para a doutrina da indissolubilidade do matrimônio. Ele argumenta que a admissão de católicos divorciados e civilmente recasados ao sacramento da penitência e da Eucaristia, mesmo sob as condições restritas sugeridas por Kasper, iria essencialmente “reconhecer a legitimidade moral do convívio more coniugali[como marido e mulher] com uma pessoa que não é o verdadeiro cônjuge” (pg. 176) e “convenceria, não somente o fiel, mas qualquer pessoa que prestasse atenção da ideia que, no fundo, não existe casamente absolutamente indissolúvel, [e] que o ‘para sempre’, ao qual aspira todo verdadeiro amor, é um ilusão”(pg. 179).
Em seu livro Kasper levanta duas outras opções para que se permita aos católicos divorciados e recasados se aproximem do sacramento  da penitência e da Eucaristia: um apelo à epikeia (presunção de que a lei não deveria ser aplicada em um caso particular por causa das circunstâncias atenuantes), e a aplicação do princípio moral da prudência. No entanto, o Cardeal Caffarra levanta a objeção que um apelo à prudência não pode ser feito neste caso, porque “aquilo que em si mesmo é... intrinsecamente ilícito nunca pode ser objeto de juízo prudencial”. Em outras palavras, “não pode existir um adultério prudente”. Caffarra defende que “também a referencia à epikeia é sem fundamento” (pg. 177). Como uma virtude, a epikeia só pode ser aplicada às leis humanas. Mas as leis que dizem respeito à indissolubilidade do matrimônio, a proibição do adultério, e o acesso à Eucaristia são leis divinas (veja Mc 10, 9; Jo 8, 11; 1Cor 11, 28). A Igreja não pode isentar o fiel da obrigação de obedecer a lei de Deus.

Os procedimentos canônicos que regem a declaração de nulidade

O Cardeal Kasper também sugere que no caso dos fieis que sejam divorciados e recasados civilmente, o processo jurídico da Igreja que rege a declaração de nulidade sejam simplificados. Especificamente, Kasper sugere a adoção de “procedimentos mais pastorais e espirituais”. Ele propõe que, no lugar de tribunais diocesanos para o matrimônio, “o bispo poderia confiar esta tarefa a um sacerdote com experiência espiritual e pastoral como um penitenciário ou um vigário episcopal”. No capítulo nove deste volume o Cardeal Leo Raymond Burke se serve da extensa legislação e comentários dos Papas , assim como da experiência da Signatura Apostólica, para explicar porque a sugestão de Kasper, se adotada, enfraqueceria o esforço da Igreja de garantir a justiça para com os fieis.
Burke faz notar que os fieis são mal servidos pelos tribunais que caem “em um tipo de pragmatismo pseudo-pastoral”, e então cita São João Paulo II, que “chamou a atenção exatamente que se evitasse a tentação de explorar o processo canônico ‘para poder alcançar o que talvez seja uma finalidade “prática”, que talvez poderia ser considerada “pastoral”, mas isto em detrimento da verdade e da justiça’” (pg. 215). Burke enfatiza que se os tribunais derem a impressão de que sua principal finalidade é capacitar as pessoas com matrimônios falidos possam se casar outra vez na Igreja, oferecendo explicações superficiais ou errôneas, ou até mesmo utilizando procedimentos incorretos, os fieis ficarão “desedificados ou até mesmo escandalizados” (pg. 217).
No coração do procedimento canônico que tem por finalidade estabelecer a verdade a respeito de uma demanda de nulidade em um caso específico de matrimônio é um processo dialético conhecido com o nome de contradictorium. Ele encarna o princípioet audiatur altera pars (e que a outra parte seja ouvida). Burke explica que este princípio determinou historicamente os procedimentos canônicos atualmente em uso nas declarações de nulidade, incluindo a necessidade de um defensor do vínculo e de uma dupla sentença conforme. Ele defende que estes avanços contra a acusação de “pesado juridicismo” (pg. 226) tendo como base o fato de que eles fortificam o processo dialético que, por sua vez, garante que o tribunal possa chegar a uma “certeza moral” (pg. 229) de que a nulidade do matrimônio foi comprovada. Burke afirma que os defensores do vínculo com muito frequência foram negligentes em cumprir suas obrigações, tendo como resultado uma falta de integridade no processo jurídico. Se todos os ministros do tribunal, incluindo os juízes, fossem mais escrupulosos no desempenho de suas responsabilidades, “o processo de se alcançar uma dupla sentença concorde, com o grau de ratificação, não levaria muito tempo” (pg. 236).

Sentido dos Fieis (Sensus fidelium)

Perto do final de seu livro, o Cardeal Kasper cita famoso ensaio do Bem-aventurado John Henry Newman “Sobre a Consulta dos Fieis em Matéria de Doutrina”, e ele se refere  à anedota atribuída a Newman “que, na crise Ariana do IV e do V séculos, não foram os bispos, mas ao contrário os fieis que perseveraram na fé da Igreja”. Kasper celebra Newman como um “precursor do Concílio Vaticano II” e relaciona o seu ensaio com a afirmação do Concílio a respeito do “sentido da fé que é dado a cada cristão por força do Batismo”. A maior parte dos comentaristas do ensaio de Newman toma erroneamente a compreensão que Newman tinha de “fieis” como referindo-se somente ao “laicato”. Mas como faz notar Ian Ker, um eminente especialista em Newman, o beato incluía os sacerdotes e os monges entre os “fieis” de seu argumento, de tal forma que a distinção que ele fazia não era entre clero e laicato, como muitos hoje creem. Além do mais, os historiadores discordam da versão de Newman daquela controvérsia e insistem que, porquanto nos é dado conhecer a posição dos fieis da Igreja primitiva durante a questão ariana, em sua maior parte eles tendiam a aderir à visão de seu bispo local, qualquer que fosse sua posição. Não foi, portanto, o laicato o responsável pela vitória da fé nicena sobre a ariana. Mesmo assim, Kasper forja uma analogia o “fiel” de Newman e o laicato casado na atual Igreja, que ele contrasta com os Cardeais “celibatários” no Consistório, porque os leigos “vivem a sua fé no evangelho da família em famílias concretas e algumas vezes em situações difíceis”. Ele então pede à Igreja que “escute o seu testemunho” e não permita que a questão dos divorciados e recasados “seja decidida somente por cardeais e bispos”.
No entanto, o “sentido dos fieis” não pode ser compreendido na teologia católica como uma expressão da opinião majoritária dentro da Igreja, e a ele não se chega através de pesquisas de opinião. Ele se refere a um instinto pela fé autêntica possuído pelos fieis, compreende-se aqui tanto a hierarquia como o laicato, como o único corpo de Cristo. Newman se referia a esta dinâmica como uma conspirativo, uma respiração conjunta de pastores e leigos. Por isto, enquanto seria errôneo sugerir que os fieis leigos carecem de um instinto da fé autêntica, é um abuso empregar o conceito numa tentativa de contrapor uma suposta “voz dos leigos” seja contra os bispos, seja contra os ensinamentos da Igreja. Estes princípios não constituem uma visão conservadora isolada. Cada um deles foi articulado pelo Concílio Vaticano II e pelos papas posteriores desde então, mais recentemente pelo próprio Papa Francisco em seu discurso de Dezembro de 2013 à Comissão Teológica Internacional.

Conclusão

Os autores deste volume, juntos, defendem que o Novo Testamento apresenta Cristo que inequivocamente proíbe o divórcio e o segundo casamento tendo como fundamento o plano original de Deus para o matrimônio em Gênesis 1, 27 e 2, 24. A solução “misericordiosa” de divórcio advogada pelo Cardeal Kasper não é desconhecida “na Igreja antiga, mas virtualmente nenhum dos escritores que chegaram até nós ou que nós consideramos como fonte de autoridade a defendem; ao contrário, quando a mencionam é para condená-la como sem base nas Escrituras. Não há nada de surpreendente nesta situação; abusos podem acontecer ocasionalmente, mas a sua mera existência não é garantia de que não sejam abusos, quanto menos que sejam modelos a serem seguidos” (pg. 82). A atual prática Ortodoxa oriental da oikonomia em casos de divórcio e novo casamento tem, grosso modo, sua origem no segundo milênio e surgiu como resposta a uma pressão política na Igreja por parte dos Imperadores bizantinos. Durante a Idade Média e também depois, a Igreja Católica no Ocidente resistiu a estes esforços com bastante sucesso e o fez pagando o preço do martírio. A praxe Ortodoxa oriental da oikonomia não é uma tradição alternativa à qual a Igreja Católica possa apelar. Oikonomia, neste contexto, tem como base uma visão de indissolubilidade do matrimônio que não é compatível com a teologia católico romana, que compreende o vínculo matrimonial como enraizado ontologicamente em Cristo. Assim, o casamento civil após o divórcio envolve uma forma de adultério, e isto faz com que a recepção da Eucaristia seja moralmente impossível (1Cor 11, 28), a não ser que o casal pratique a continência sexual. Estas não são uma série de regras confeccionadas pela Igreja; elas constituem lei divina, e a Igreja não pode mudá-las. À mulher flagrada em adultério, Cristo disse, “Vai e não peques mais”(Jo 8, 11). A misericórdia de Deus não nos dispensa de seguir os seus mandamentos.

FONTE



Robert DODARO, OSA (ed.), Remaining in the Truth of Christ, Ignatius Press, San Francisco, 2014, The Argument in Brief. Tradutor: Padre Paulo Ricardo (tradução não revisada) <https://padrepauloricardo.org/>


segunda-feira, 2 de março de 2015

Cardeal Ratzinger: "Liturgias diferentes. Uma riqueza para a única Igreja" (excerto do recém-publicado "Ser Cristão na Era Neopagã")

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Recentemente foi lançado pela Editora Ecclesiae o primeiro volume de "Ser Cristão na Era Neopagã", trazendo material do então Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, nunca antes publicado no Brasil. Trata-se de discursos, homilias, debates e entrevistas concedidas pelo cardeal à revista italiana 30 giorni nella Chiesa e nel mondo (30 dias na Igreja e no mundo).


Organizado por meu amigo Rudy Albino de Assunção, ratzingeriano de carteirinha*, que também escreveu a apresentação do livro e a maioria das notas que introduzem cada artigo, este primeiro volume reúne diversos discursos e homilias de Ratzinger. O terceiro volume, composto por entrevistas, será de especial interesse dos nossos leitores, trazendo inúmeras menções à Reforma Litúrgica que seguiu ao Concílio Vaticano II.

Rudy, que acompanha este nosso apostolado em defesa da sagrada Liturgia, teve a bondade de enviar-nos - com a devida permissão da Editora Ecclesiae, a quem desde já agradecemos - um trecho em que Ratzinger fala do que se convencionou chamar de as duas formas do Rito Romano.

É interessante notar como Ratzinger já havia refletido ali sobre muitos dos pontos relacionados à Forma Extraordinária os quais tocaria durante seu pontificado, a saber: o reconhecimento do zelo apostólico das comunidades ligadas ao rito antigo; as dificuldades que muitas dessas comunidades enfrentaram (e continuam enfrentando!), fruto do preconceito e de um entendimento errôneo e ideológico de unidade; a falta de diferenciação entre o Concílio e a Reforma Litúrgica que o seguiu; e, por fim, a aplicação excessiva de criatividade em boa parte das missas segundo o rito moderno.


* * *



LITURGIAS DIFERENTES.
UMA RIQUEZA PARA A ÚNICA IGREJA**
(Novembro de 1998)

No dia 02 de julho de 1998 a Pontifícia Comissão Ecclesia Dei completava 10 anos de sua criação por parte do papa João Paulo II. Ela for criada para facilitar a comunhão com todos aqueles que estavam ligados de alguma maneira com Monsenhor Marcel de Lefebvre e também de possibilitar que os bispos fossem mais abertos a dar o indulto para a celebração da missa segundo o Missal de São Pio V. Na época se deram muitas comemorações, inclusive uma grande peregrinação a Roma de milhares de sacerdotes e fiéis tradicionalistas. Mas aliada à peregrinação, foi promovida uma mesa redonda no hotel Erfige, com a presença de Gérard Calvet, Camille Perl, Michael Davies, Robert Spaemann e do Cardeal Ratzinger, que fez a conferência de abertura. O que se segue é o texto da conferência de Ratzinger .
***
Que balanço podemos fazer hoje, há dez anos da publicação do motu proprio Ecclesia Dei? Creio que antes de tudo seja uma ocasião para expressar o nosso agradecimento. As várias comunidades que surgiram graças a este documento pontifício presentearam a Igreja com um grande número de vocações sacerdotais e religiosas que com zelo e alegria e em comunhão profunda com o Papa trabalham pelo Evangelho nesta época histórica. Graças a elas muitos fiéis reforçaram ou conheceram pela primeira vez a alegria de poder participar da liturgia e do amor para com a Igreja. Em numerosas dioceses espalhadas pelo mundo elas servem à Igreja colaborando ativamente com os bispos e instaurando um relacionamento positivo e fraterno com os fiéis que se sentem à vontade na forma renovada da liturgia. Tudo isso hoje merece todo o nosso agradecimento.
Todavia seria irrealista calar sobre os muitos lugares onde não faltam dificuldades, então como agora, porque alguns bispos, sacerdotes e fiéis consideram o apego à antiga liturgia (a dos textos litúrgicos de 1962) como um elemento de divisão que perturba a paz da comunidade eclesial e deixa supor uma certa reserva na aceitação do Concílio e, mais em geral, na obediência devida aos pastores legítimos da Igreja. Portanto, as perguntas que devemos nos colocar são as seguintes: como se podem superar estas dificuldades? Como podemos criar o clima de confiança necessário para fazer com que os grupos e as comunidades ligadas à antiga liturgia se insiram pacificamente e proficuamente na vida da Igreja? Porém, estas questões subentendem uma outra; qual é a razão profunda desta desconfiança ou, até mesmo, da recusa do prosseguimento da antiga liturgia? Sem dúvida há razões pré-teológicas ligadas ao temperamento de cada indivíduo, ao contraste entre os diversos caráteres, ou a outras circunstâncias externas. Mas certamente existem outras causas, mais profundas e menos fortuitas.
Há duas razões que se apresentam com maior frequência: a não obediência ao Concílio que reformou os textos litúrgicos e a ruptura da unidade derivante da existência de formas de liturgia diferentes. É relativamente simples contradizer ambos os raciocínios. Não foi propriamente o Concílio quem reformou os textos litúrgicos, ele apenas ordenou a sua revisão e, para tal fim, ficou algumas linhas fundamentais. O Concílio deu principalmente uma definição de liturgia que fixa a medida interna de cada uma das reformas e, contemporaneamente, estabelece o critério válido para cada celebração litúrgica legítima. A obediência ao Concílio seria violada no caso em que não fossem respeitados tais critérios fundamentais internos e fossem colocadas à parte as normae generales, formuladas nos números 34-36 da Constituição sobre a Sagrada Liturgia (Sacrosanctum Concilium). É necessário julgar as celebrações litúrgicas segundo estes critérios, sejam elas baseadas em velhos ou em novos textos. Com efeito, o Concílio, como já foi acenado, não prescreveu ou aboliu textos, mas deu normas de base que todos os textos devem respeitar. Neste contexto, é útil recordar o que foi declarado pelo Cardeal Newman: a Igreja no decorrer da sua história, nunca aboliu ou proibiu formas ortodoxas de liturgia, por que isso seria alheio ao próprio espírito da Igreja. Uma liturgia ortodoxa, ou seja que é expressão da verdadeira fé, de fato, jamais é uma simples reunião de cerimônias diferentes feita em bases a critérios pragmáticos, das quais pode-se dispor de maneira arbitrária, hoje de um modo, amanhã de outro. As formas ortodoxas de um rito são realidades vivas, nascidas do diálogo de amor entre a Igreja e o seu Senhor. São expressões da vida da Igreja, nas quais se condensam a fé, a oração e a própria vida das gerações e nas quais encarnaram-se numa forma concreta e num momento a ação de Deus e a reposta do homem. Estes ritos podem se extinguir se historicamente desaparece o sujeito que foi o seu portador ou se este sujeito está inserido com a sua herança num outro contexto de vida. Em situações históricas diferentes, a autoridade da Igreja pode definir e limitar o uso dos ritos, mas jamais os proíbe tout-court. Assim, o Concílio ordenou uma reforma dos textos litúrgicos e, consequentemente, das manifestações rituais mas não abandonou os velhos livros. O critério expresso pelo Concilio é, ao mesmo tempo, mais amplo e mais exigente: ele convida todos a um exame de consciência.
Mais tarde voltaremos a falar sobre este ponto. Por enquanto é necessário examinar um outro assunto, o da – pressuposta – ruptura da unidade. Sobre este propósito, é preciso distinguir na questão o aspecto teológico do prático. No que se refere a componente teorética e fundamental, devemos constatar que sempre existiram mais formas no rito latino que foram progressivamente caindo em desuso devido à unificação dos espaços de vida na Europa. Até a época do Concílio, ao lado do rito romano, conviviam o ambrosiano, o moçárabe de Toledo, o rito dos Dominicanos, e talvez muitos outros que eu não conheço. Jamais alguém se escandalizou pelo fato de que os Dominicanos, muitas vezes presentes em nossas paróquias, não celebrassem a missa como os párocos, mas seguissem um seu próprio rito. Todos nós sabíamos que o rito dele era católico assim como o romano e éramos orgulhosos da riqueza de tantas tradições diferentes. Além disso, não se pode esquecer que muitas vezes abusa-se da liberdade de espaço que o novo Ordo Missae deixa à criatividade e que a diferença entre os vários modos em que a liturgia é colocada em prática e celebrada nos diferentes lugares em base aos novos textos, muitas vezes é maior do que entre a antiga e a nova liturgia. Um cristão destituído de uma cultura litúrgica particular pouco distingue de uma missa cantada em latim segundo o velho Missal de uma cantada em latim segundo o novo, enquanto que pode ser enorme a diferença entre uma liturgia celebrada respeitando fielmente os ditames do Missal de Paulo VI e as várias formas de celebrações litúrgicas em língua viva amplamente difusas, que deixam grande espaço à criatividade e à imaginação. [...]

* * *
Para mais informações, visite o site da editora.

* Não deixem de visitar o site Ratzinger Brasil.
** RATZINGER, Joseph. Ser cristão na era neopagã. Campinas, Ecclesiae, 2014, pp. 183-186.
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