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quarta-feira, 28 de março de 2012

Mons. Guido Marini: A linguagem da celebração litúrgica

Do site da Santa Sé:

DEPARTAMENTO PARA AS CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS DO SUMO PONTÍFICE

A LINGUAGEM DA CELEBRAÇÃO LITÚRGICA

Publicamos amplos excertos do relatório sobre «A linguagem da celebração litúrgica », que o mestre das celebrações litúrgicas pontifícias apresentou no dia 24 de Fevereiro passado, na abertura do curso sobre «Ars celebrandi», na sede da Pontifícia Universidade da Santa Cruz em Roma.

Não é possível começar um curso sobre a ars celebrandi, abordando a temática da linguagem da celebração litúrgica, sem evocar no pensamento a famosa citação da exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis, de Bento XVI: «Igualmente importante para uma correcta ars celebrandi, arte da celebração, é a atenção a todas as formas de linguagem previstas pela liturgia: palavra e canto, gestos e silêncios, movimento do corpo, cores litúrgicas dos paramentos.

Com efeito, a liturgia, por sua natureza, possui uma tal variedade de níveis de comunicação que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade. A simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos, comunicam e aliciam mais do que o artificialismo de adições inoportunas. A atenção e a obediência à estrutura própria do rito, ao mesmo tempo que exprimem a consciência do carácter de dom da Eucaristia, manifestam a vontade que o ministro tem de acolher, com dócil gratidão, esse dom inefável» (n. 40).

Há alguns anos, precisamente em 2009, foi publicada uma colectânea de contribuições sobre a liturgia, da autoria do cardeal Joseph Ratzinger, intitulada: Diante do protagonista. Nas raízes da liturgia. Trata-se simplesmente de um título, não há dúvida. E no entanto, é particularmente indicativo daquilo que encontramos nas raízes da temática relativa à liturgia. Nessas raízes encontramos Jesus Cristo, o Protagonista, o verdadeiro e mais importante Protagonista da liturgia.

Com efeito, através da liturgia, o Senhor dá continuidade no seio da sua Igreja à obra da nossa redenção (cf. Sacramentum caritatis, 2). Aquilo que teve lugar na história, ou seja, o mistério pascal, o mistério da nossa salvação, torna-se hoje presente na celebração litúrgica da Igreja. De tal maneira, o Salvador não é uma recordação do tempo passado, mas constitui o Vivente, que dá continuidade à sua obra salvífica no seio da Igreja, comunicando a sua vida, que é graça, que é antecipação de eternidade. Na própria celebração eucarística, a assembleia congregada responde ao «Mistério da fé», sucessivo à consagração, com as palavras deveras significativas: «Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição, enquanto esperamos a vossa vinda». Nesta formulação da liturgia romana voltamos a encontrar descritos os três momentos que são próprios de cada celebração sacramental: ou seja, a memória do acontecimento salvífico que teve lugar no passado, a presente acção de graças no contexto da celebração e a antecipação da glória vindoura. Desta forma a Igreja, convocada para a celebração litúrgica, renova sempre de novo a experiência da verdade da seguinte afirmação paulina: «Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para toda a eternidade» (Hb 13, 9).  Aquele Jesus que ontem, num momento histórico específico, viveu o mistério da sua encarnação, paixão, morte e ressurreição, é o mesmo Jesus de quem hoje, no tempo que passa, se renova sacramentalmente o mistério da salvação, de tal modo que todos possam ter acesso a ele. E é sempre o mesmo Jesus que a Igreja espera voltar na glória, mas prelibando desde já, como antecipação, a alegria da sua presença e da sua obra.

A presença misteriosa e real de Cristo na liturgia e o seu ser protagonista no rito celebrado exige da linguagem litúrgica o esplendor da nobre simplicidade, segundo a célebre afirmação do Concílio Vaticano II (cf. Sacrosanctum concilium, 34). Falei sobre o «esplendor da nobre simplicidade», porque esta é a expressão completa utilizada pelos Padres conciliares. Nela é-nos concedido encontrar a relação intrínseca entre beleza, nobreza e simplicidade.

Como sempre, cada indicação magisterial deve ser lida e compreendida no contexto mais amplo do tema de que se trata, e em relação de desenvolvimento harmonioso com a totalidade do ensinamento da Igreja. Desta maneira, vê-se claramente como estão distantes da verdade aquelas insistências acentuadas em evocar uma determinada simplicidade que, por vezes, induziram a tornar o rito litúrgico aproximativo, banal, maçador e até insignificante. Trata-se de um modo de entender a simplicidade não fundamentado no ensinamento da Igreja e na sua grandiosa tradição litúrgica. Para não dizer que, em algumas ocasiões, tal modo de considerar a nobre simplicidade se traduz naquela que poderíamos definir uma nova complexidade pouco nobre. Não se trata, porventura, precisamente disto, quando a liturgia se torna teatro de ideias subjectivas e extemporâneas, com a inserção de símbolos desprovidos de um significado autêntico, ou tão complicados a ponto de terem que ser decifrados mediante longas explicações?

Voltemos à nobre simplicidade autêntica, ouvindo o Papa Bento XVI que, na exortação apostólica pós-sinodal sobre a Eucaristia, Sacramentum caritatis, diz: «A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De facto, a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade, veritatis splendor (...) Referimo-nos aqui a este atributo da beleza, vista não como mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o amor (...) A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi revelado definitivamente no mistério pascal. A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra (...) Concluindo, a beleza não é um factor decorativo da acção litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há-de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à acção litúrgica, a fim de que brilhe segundo a sua própria natureza» (n. 35).

Como sempre, as palavras do Papa têm o grande dom da clareza. Daqui segue-se que na celebração litúrgica não é admissível qualquer forma de minimalismo e de pauperismo. E isto, sem dúvida, não para fazer espectáculo ou em vista de um esteticismo vazio. Nas diversificadas formas antigas e modernas em que encontra expressão, o belo constitui a modalidade própria em virtude da qual nas nossas liturgias resplandece, ainda que de maneira sempre pálida, o mistério da beleza do amor de Deus. Eis por que motivo nunca se fará o suficiente para tornar os nossos ritos simples, enquanto claros no seu desenvolvimento, nobres e bonitos. É quanto nos ensina a Igreja, que na sua longa história jamais teve receio de «dissipar» para circundar a celebração litúrgica com as expressões mais elevadas da arte: da arquitectura à escultura, à música e às alfaias sagradas. É quanto nos ensinam os santos que, não obstante a sua pobreza pessoal e a sua caridade heróica, sempre desejaram que ao culto se destinasse quanto há de melhor.

Ouçamos novamente Bento XVI, que diz: «As nossas liturgias da terra, inteiramente dedicadas a celebrar este gesto único da história, nunca conseguirão expressar totalmente a sua densidade infinita. Sem dúvida, a beleza dos ritos jamais será bastante requintada, suficientemente cuidada nem muito elaborada, porque nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. As nossas liturgias terrenas não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia que se celebra na Jerusalém do céu, ponto de chegada da nossa peregrinação na terra. Possam, porém, as nossas celebrações aproximar-se o mais possível dela, permitindo-nos antegozá-la! » (Homilia durante a celebração das Vésperas na Catedral de Notre Dame, Paris, 12 de Setembro de 2008). «A beleza intrínseca da liturgia tem, como sujeito próprio, Cristo ressuscitado e glorificado no Espírito Santo, que inclui a Igreja no seu agir» (Sacramentum caritatis, 36). É Bento XVI que, com estas palavras, nos recorda de novo que a liturgia é obra do Cristo total e, por conseguinte, também da Igreja. Da afirmação que a liturgia é obra da Igreja derivam algumas considerações de não pouca importância para aquela essência da liturgia que aqui estou a explicar. Com efeito, quando se diz que a Igreja constitui um sujeito que age, faz-se referência à Igreja inteira, enquanto sujeito vivo que atravessa o tempo, que se realiza na comunhão hierárquica, que é uma realidade que ainda peregrina sobre a terra e, ao mesmo tempo, uma realidade que já chegou às margens da Jerusalém celeste.

No mês de Agosto de 2006, em Castel Gandolfo, respondendo à pergunta de um sacerdote durante um encontro com o clero da diocese de Albano, o Papa Bento XVI assim se expressava, em conformidade com o estilo discursivo típico de uma conversa: «A Liturgia cresceu em dois milénios e também depois da reforma não se tornou algo elaborado apenas por alguns liturgistas. Ela permanece sempre continuação deste crescimento permanente da adoração e do anúncio. Assim, é muito importante, para nos podermos sintonizar bem, compreender esta estrutura que cresceu no tempo e entrar com a nossa mens na vox da Igreja. Na medida em que interiorizamos e compreendemos esta estrutura e assimilamos as palavras da Liturgia, podemos entrar nesta consonância interior e assim não só falar com Deus como pessoas individualmente, mas entrar no “nós” da Igreja que reza. Desta forma transformamos também o nosso “eu” entrando no “nós” da Igreja, enriquecendo e alargando este “eu”, rezando com a Igreja, com as palavras da Igreja, estando realmente em diálogo com Deus». Entrar no «nós» da Igreja que reza. Este «nós» fala-nos acerca de uma realidade, nomeadamente da Igreja, que vai mais além dos ministros ordenados individualmente e de cada um dos fiéis, de cada comunidade e dos grupos singularmente, porque ali a Igreja se manifesta e se torna presente na medida em que se vive a comunhão com a Igreja inteira, aquela Igreja que é católica, universal, dotada de uma universalidade que alcança todos os tempos, todos os lugares, ultrapassando o limiar do tempo para se deixar alcançar pela própria eternidade.

Por conseguinte, da essência da liturgia faz parte o facto de que ela contém em si antes de tudo a característica da catolicidade, onde unidade e variedade se compõem em harmonia, a ponto de formarem uma realidade substancialmente unitária, não obstante a legítima diversidade das várias formas. E além disso, a característica da não-arbitrariedade, que evita confiar à subjectividade do indivíduo ou do grupo aquilo que, ao contrário, pertence a todos como um tesouro recebido, que deve ser conservado e transmitido. E ainda a característica da continuidade histórica, em virtude da qual o desenvolvimento desejável se parece com o de um organismo vivo que não renega o próprio passado, atravessando o presente e orientando-se para o futuro.

E, enfim, a característica da participação na liturgia celestial, para a qual é mais apropriada do que nunca falar da liturgia da Igreja como do espaço humano e espiritual em que o céu se debruça sobre a terra. Pensemos, apenas de maneira exemplificativa, nas palavras da Prece eucarística I, em que pedimos: «Fazei com que esta oferenda [pelas mãos do vosso santo anjo] seja levada ao altar do Céu». Quanto dissemos até agora, a propósito da liturgia como gesto da Igreja, não seria suficiente se não se acrescentasse o tema da participação. Com efeito, é precisamente a liturgia, entendida como obra da Igreja, que exige uma participação consciente, concreta e frutuosa (cf. Sacrosanctum concilium, 11). Cada consideração a este propósito corre o risco de ser insensata e ambígua, se o ponto de partida não for a obra de Cristo e da Igreja. É precisamente este gesto que deve ser participado de maneira consciente, concreto e frutuoso. E isto só é possível, se se realizar uma autêntica comunhão de fé com o agir da Igreja e o agir de Cristo.

Mas em que consiste o agir da Igreja? É o agir da Esposa, que tende a tornar-se uma única realidade com Cristo Esposo e com o seu agir. E qual é o agir de Cristo? A sua oferenda de amor ao Pai, pela nossa salvação. Por conseguinte, a participação consciente, concreta e frutuosa, na liturgia, verifica-se na medida em que cada um e todos compartilham o agir da Igreja, que tende ao Esposo e, portanto, deixemo-nos envolver pela obra do Esposo, que é sacrifício de amor ao Pai pela salvação do mundo.

Agora, o tema da participação oferece a oportunidade de ampliar aquilo que já dissemos a propósito do agir de Cristo no contexto da liturgia. Façamo-lo, deixando-nos conduzir pela mão por uma argumentação fundamental do teólogo Joseph Ratzinger: «Com o termo “actio”, referido à liturgia, entende-se nas fontes o cânone eucarístico. O verdadeiro agir litúrgico, o autêntico gesto litúrgico, é a oratio: a grande oração, que constitui o núcleo da celebração litúrgica e que, precisamente por este motivo, no seu conjunto, foi denominada pelos Padres com o termo oratio . Esta definição já era correcta a partir da própria forma litúrgica, porque na oratio se desenvolve aquilo que é essencial para a Liturgia cristã (...) Esta oratio — a solene prece eucarística, “o cânone” — (...) é actio no sentido mais excelso de tal termo. Com efeito, nela verifica-se que a actio humana (...) passa em segundo plano, deixando espaço à actio divina, ou seja, ao agir de Deus» (Introdução ao espírito da Liturgia, págs. 167-168).

Por conseguinte, na oratio realiza-se aquilo que é essencial para a liturgia cristã. Interroguemo-nos: «Em que consiste este essencial que se verifica? ». Respondamos, seguindo o texto de Ratzinger: «O agir de Deus». E tudo isto é quanto a Igreja, Esposa de Cristo, vive na celebração da liturgia. Com efeito, aquilo que continua a ser essencial para a liturgia é que quantos nela participam rezem para compartilhar o mesmo sacrifício do Senhor, o seu gesto de adoração, tornando-se um só com Ele, verdadeiro corpo de Cristo.

Noutras palavras, o que é essencial é que no final seja superada a diferença entre o agir de Cristo e o nosso próprio agir, que haja uma progressiva harmonização entre a sua vida e a nossa vida, entre o seu sacrifício de adoração e o nosso, de tal maneira que existe um único agir, seu e ao mesmo tempo nosso. Aquilo que são Paulo afirma não pode deixar de ser a indicação do que é essencial alcançar, em virtude da celebração litúrgica: «Fui crucificado com Cristo; já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 19-20). Como conclusão, considero importante ressaltar aquela que me parece ser uma grave urgência da nossa época, ou seja, a necessidade da formação para a liturgia e a sua linguagem, a todos os níveis. Como bem sabemos, nada mais é possível dar por certo. Num tal processo formativo, considero que existem quatro prioridades. Antes de tudo, é necessário fazer aprofundar e assimilar os temas-chave da teologia da liturgia, como fundamento da prática celebrativa.

Em segundo lugar, é importante ajudar a compreender a linguagem litúrgica, enquanto arraigada numa tradição secular, sujeita ao discernimento eclesial, sempre numa lógica de desenvolvimento harmonioso que saiba valorizar tanto o antigo como o novo. Além disso, é fundamental introduzir no sentido autêntico da celebração que, enquanto culto espiritual, deve plasmar a vida em todos os seus aspectos, oferecendo uma nova linguagem — a de Cristo — à quotidianidade. Enfim, é indispensável suscitar um renovado amor por aquilo que é objectivo, uma adesão convicta e ministerial ao rito, a ser entendido não como aspecto coercitivo da expressividade mas, pelo contrário, como uma condição indispensável para uma expressividade autêntica e verdadeiramente comunicativa do mistério de Cristo, celebrado na Igreja.

Mons. Guido Marini
Mestre das Celebrações Litúrgicas Pontifícias

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