Encontro-me em circunstâncias privilegiadas em
relação à maior parte dos fiéis portugueses. A crise em Portugal obrigou-me a
emigrar e, graças a tal, tenho a possibilidade de participar na vetus ordo semanalmente. É sobre a minha
vivência da vetus ordo que vos quero
falar, sobretudo aos leitores portugueses que, por um motivo ao outro, se vêm
privados da FE em terras lusitanas. Desde já o seguinte caveat: não pretendo ser polémico, nem pretendo demonstrar que a novus ordo é pior que a vetus ordo; simplesmente quero
apresentar alguns motivos porque esta última me ajuda a viver melhor a nossa
Fé. Irei-me focar muito sumariamente em apenas três aspectos. As palavras
seguintes serão as minhas opiniões – fruto de meditação, mas mesmo assim
opinião, portanto têm o valor que têm.
Próprios
Posso contar nos dedos a quantidade de vezes
que ao longo dos anos ouvi os próprios nas várias Missas paroquiais em que
participei em Portugal.
Que existam lugares onde se utilizem, não duvido. É falha da novus ordo? Não, pois os próprios estão
lá; se se optam por outros textos, os motivos que levam a tal já me são
alheios.
Não existindo a possibilidade de escolher
outros textos que não os próprios que vêm no missal (que por sua vez vêm dum
livro chamado Graduale), a vetus ordo coloca-nos obrigatoriamente
em contacto com estes. Os próprios falam-nos da festa que se está a celebrar,
seja dum santo seja duma efeméride. Ajudam-nos a sentir cum Ecclesiae; colocam-nos na boca as palavras através das quais a
Igreja entende o acto que se está a concretizar. Devido aos próprios toda a
Missa está impregnada das Escrituras; são raros os casos em que os próprios não
são textos retirados das Escrituras (os casos excepcionais que me ocorrem de
momento nem são no missal romano, mas sim no bracarense).
Os próprios põem-nos em contacto com o
Saltério pois são maioritariamente compostos por versos tirados dos Salmos. Enquanto
que a exposição principal aos Salmos nas celebrações da novus ordo se dá aquando do Salmo responsarial (porque se opta
muitas vezes por ignorar os próprios), na vetus
ordo toda a celebração é intercalada com versos dos Salmos. Encontramos os
Salmos no Intróito, no Gradual, no Tracto, no Aleluia, no Ofertório e na
antífona da Comunhão. É também através dos próprios que a Igreja nos ajuda a
interpretar as Escrituras.
Veja-se, por exemplo, o caso dos próprios da
primeira Missa do Natal. O Intróito é Sl
2, 7.1: Dominus dixit ad me: Filius meus
es tu; ego hodie genui te. Quare fremuerunt gentes, et populi meditati sunt
inania? A Igreja põe estes versos do Salmo 2 na boca de Cristo; dá-lhes uma
interpretação cristológica. O Gradual vai buscar o Sl 109, 3.1 Tecum principium in die virtutis tuæ in
splendoribus sanctorum: ex utero, ante luciferum, genui te. Dixit Dominus
Domino meo: Sede a dextris meis, donec ponam inimicos tuos scabellum pedum
tuorum e dá-lhes também uma interpretação cristológica (interpretação essa
que já o próprio Jesus tinha dado, como podemos atestar nos Evangelhos). O Ofertório
apresenta Sl 95, 11.13 Lætentur cæli, et
exsultet terra;
commoveatur mare et plenitudo ejus; a facie Domini, quia venit. Mais
uma vez a Igreja, utilizando este verso na sua Liturgia, mostra-nos que ele se
refere a Cristo e ao Seu nascimento.
Repetição
Umas das coisas que talvez salte à vista (e
aos ouvidos) de quem participa pela primeira na vez na Missa segundo a vetus
ordo são as repetições. São as vezes que o sacerdote se vira do altar para a
congregação; o tríplice bater no peito durante o Confiteor; os vários ósculos que o sacerdote faz ao altar; os
vários sinais da cruz; as varias genuflexões;… Apesar da vetus ordo ser o rito menos “floreado” dos ritos latinos (o rito
bracarense, como praticamente todo o uso medieval, tem bastante mais “ritual”),
é notoriamente mais ritualizado que a novus
ordo. Mas porque dar importância às repetições? Não são as repetições
maçadoras ou supérfluas? Creio que não; antes pelo contrário, creio que são
bastante pedagógicas para o crente que participa na Missa e ajudam melhor a
entrar no mistério. Acredito que quem esteja atento ao que se passa durante a
celebração é levado a questionar-se sobre o porquê da repetição de certos gestos
e palavras. A Igreja, na sua sabedoria, instrui os seus filhos através da repetição.
Estas repetições de gestos e palavras são, entre outras coisas, chamadas de atenção;
obrigam-nos a focar no que se está a fazer ou chamam-nos de volta se por acaso
nos tenhamos distraído. Quantas vezes não me distraí após o Pater Noster e é a segunda ou terceira repetição
de Domine non sum dignus que sou
chamado de volta à realidade. Nenhum gesto é supérfluo; tudo tem o seu
significado e cabe a nós descobri-lo e apropria-lo ao invés de ceder a soberba
e dizer “não entendo a razão de ser disto, logo deve estar errado”. Diz
Origenes que o corpo é ícone da alma, portanto a postura e os gestos fazem
parte da oração. Os Padres da Igreja dão testemunho de como o corpo é
importante na oração (os Nove Modos de
Orar de S. Domingos atestam a este facto); de facto a vetus ordo acaba por envolver mais a corporalidade da oração
através de gestos que já nos vem de tempos remotos.
Participação
Após regressar a Igreja ouvi falar muito de participação
activa e era bombardeado com opiniões contraditórias do que isso significaria.
Foi sobretudo o frequentar a vetus ordo que me ensinou a participar
na Liturgia, seja em que rito ou forma for. Participação activa no seu sentido
mais pleno é participar na Paixão de Cristo, completando o que falta nas Suas
tribulações (cf Col 1, 24). Assistir
a Missas solenes ajudou bastante para esclarecer qual o papel dos leigos na
Missa (uso aqui a palavra assistir não no sentido de espectador, como é usual
entender-se quando se critica que “não se assiste à Missa”, mas no sentido de
quem ajuda, de quem dá apoio, que é o verdadeiro sentido). Para quem assiste
pela primeira vez a uma Missa solene, parecerá certamente tudo uma confusão.
Estão várias coisas a acontecer ao mesmo tempo: o sacerdote e os seus ministros
estão a rezar orações que lhes são próprios, o coro está a cantar algum dos
próprios da Missa do dia, os leigos estão a fazer alguns gestos (ou até a
acompanhar o coro se souberem) ou estão “apenas” receptivos, atentos ao que se
passa. Mas o que é à primeira vista uma confusão revela-se de facto uma
sinfonia. Cada grupo está a exercer o seu munus,
cada qual tem o seu papel a desempenhar na Liturgia.
Inicialmente seguia tudo pelo missal. E apesar
de ainda recorrer por vezes ao missal (sobretudo para ver os próprios), com o
passar do tempo tenho-me familiarizado mais e mais com a estrutura da Missa em si. A familiarização com a
estrutura da Missa ajuda a que eu junte as minhas orações pessoais às do
sacerdote nos momentos em que os leigos nada têm a responder durante a Missa. Vou
aprendendo a trazer para a Liturgia a minha vida, a oferecê-la aquando do
Ofertório para que aquilo que o sacerdote, através de Cristo, realiza ao
oferecer o pão e vinho se venha a realizar em mim, para que o Cristo que se
torna presente sobre o altar se vá tornando presente em mim. Nas orações do Canon
junto as minhas intenções às do sacerdote, para que ele as apresente sobre o
altar.
Termino por aqui este breve resumo, deveras
incompleto, da minha participação na vetus
ordo. Teria muito mais a dizer sobre outros aspectos, mas creio que outros
já o terão dito e melhor do que eu alguma vez o poderia dizer. Desejo apenas
que este testemunho acenda nalgum leitor português o desejo de descobrir o seu
património litúrgico, de não o descartar logo a partida, e qual pai de família
aprenda a tirar deste tesouro coisas novas e velhas.