Tomo as lições do professor de liturgia no
Seminário Interdiocesano Maria Mater Ecclesiae, em Itapecerica da Serra, SP, Pe. Antonio Rivero, LC, a quem tenho a honra e a alegria de conhecer, para explanar, na coluna deste mês, sobre alguns aspectos da liturgia vivida em cada circunstância.
O referido sacerdote se indaga, em uma sua apostila para uso no seminário:
“Por que às vezes se dá essa separação? De um lado, a celebração; de outro, nossa vida não responde a essa celebração. A resposta é singela: pelo pecado e por nossa miséria.”
No tempo da graça, em que o véu do Templo se rasgou em duas partes, de alto a baixo, não deve haver essa dicotomia entre liturgia e vida. Somos chamados, como bem nos ensinou Nosso Senhor, a adorar o Pai em espírito e em verdade. Os ritos, importantíssimos, traduzem uma vivência plena e real. E, se é real, não se manifesta apenas durante os minutos da Missa, ou enquanto folheamos o breviário, ou recebemos os sacramentos. A adoração católica é interna e externa, nas palavras de Pio XII em sua encíclica Mediator Dei.
A santificação do cristão se dá pela ação da graça que nos chegam pelos sacramentos, que celebramos na liturgia. Os sacramentos são os canais da graça, sem a qual não podemos ser salvos, não podemos ser santos. A liturgia é a celebração desses sacramentos, é o espaço apropriado para a fluência da graça em nossa alma.
Na Santa Missa, assistimos à atualização da Cruz, ao espetáculo no qual, sobre o altar, usando-se do sacerdote a Ele unido pelo sacramento da Ordem, Cristo Jesus se oferece por nossa salvação. Na Eucaristia, unimo-nos intimamente a esse Jesus que, após ter-se oferecido ao Pai em sacrifício, se nos dá em alimento no seu verdadeiro Corpo e no seu verdadeiro Sangue. Nos demais sacramentos, há um acréscimo da graça santificante. Toda a liturgia fala de santificação, e não apenas a simboliza, como que a torna atual, real, concreta. Tudo isso é verdade.
Todavia, a santificação não é processo que se esgota na liturgia ou nos sacramentos. O homem que assiste Missa, que comunga, que se confessa, que caminha em procissão, que recita a Liturgia das Horas, é um homem integral, completo. Não um fantasma. E, como concreto que é, o homem se movimenta por diferentes espaços, fazendo de sua vida uma teia com distintas circunstâncias. Nessas circunstâncias é que ele é chamado a se santificar. A graça recebida nos sacramentos, celebrada na liturgia, atua nesse homem não só no espaço físico da igreja, e sim também na sua oração pessoal devocional, no seu estudo, no seu apostolado, no seu trabalho, na sua vivência em família, no seu descanso, no seu lazer.
A liturgia que é bem vivida em si mesma deve favorecer, impulsionar a que seja bem vivida também nos outros aspectos. O homem que vive bem a Missa, vive bem seu trabalho, deveres de estado, ocupações familiares, diversões etc. Em todos esses locais e ambientes devemos, a partir da liturgia, agir como Cristo, pensar como Cristo, amar como Cristo, sentir como Cristo.
Por outro lado, se a liturgia é transportada, em seu caráter espiritual, a outros ambientes para que sejam como que seu prolongamento, podemos, de outra sorte, dizer que damos vida à própria liturgia. É uma troca. O trabalho e o estudo se vivificam quando são expressão de uma liturgia bem vivida; sem embargo, a liturgia é melhor vivida quando a continuamos nos nossos afazeres cotidianos, por mais simples e “laicais” que pareçam.
Evidentemente, a liturgia não precisa de vida, no sentido mais estrito, dado que ela é justamente a fonte da nossa vida. Aqui tomamos o vocábulo em uma expressão mais poética, para ressaltar uma liturgia percebida com mais entusiasmo por todas as potências de nossa alma.
Desse modo, o primeiro lugar em que o Pe. Rivero diz que a liturgia deve ser feita vida é a oração. Liturgia é ação pública, oficial, da Igreja, mesmo quando um sacerdote, sozinho, celebra a Santa Missa sem nenhum fiel a assistir, mesmo quando um monge, no silêncio do claustro, balbucia o hino de Laudes. A oração a que o padre legionário se refere, então, não é a litúrgica, e sim a pessoal, devocional, ação privada.
A oração será tanto mais autêntica quanto mais beber na fonte inesgotável da liturgia. Não como certos liturgistas do século XX, que condenavam, na prática, as formas privadas de piedade, ou a relegavam a um segundo plano, como se fossem meramente toleradas como ações de almas mais simples. A devoção deve, sim, ser incentivada: o terço, a via sacra, as novenas, as adaptações do breviário, as bandeiras, as visitas... Porém, tudo isso deve se inebriar da liturgia.
A oração pessoal é o campo da luta, do combate entre nossa alma, com a ajuda da graça, e o demônio. A oração é também a própria luta. E nos nutrimos para essa peleja não só da própria oração, como da liturgia. Além disso, se a liturgia é o meio no qual o processo de santificação se dá, em que conformamos nossa alma à vontade de Deus, essa santificação é como que facilitada pela abertura de nossa alma, o que conseguimos formamos nossa inteligência, nossa vontade e nossas paixões no terreno próprio da oração. A oração abre nossa alma para os bens que recebemos na liturgia. Daí que precisemos cultivar, para uma liturgia bem vivida, uma oração bem feita, de íntimo relacionamento com Cristo, e aumento da amizade entre Ele e nossa alma.
Nossa santificação é um processo, e depende de nossa disponibilidade. Essa entrega nossa a Deus, para que Ele nos santifique – na liturgia e pela liturgia –, se forja pela ação do Espírito Santo e nossa liberdade durante a oração pessoal. Fazendo oração, nos fazemos receptivos à ação da graça.
Por outro lado, não só de oração vivemos. Até os religiosos contemplativos sabem do valor do trabalho. Reza e trabalha, é o conselho de São Bento, o patriarca do monaquismo no Ocidente.
Trabalhar por trabalhar é uma escravidão, um fardo. Só pela graça de Deus, somos libertos disso, em Cristo Jesus, e o trabalho se torna ocasião de grande júbilo, e locus de santidade. Assim como o sofrimento sem Cristo não tem sentido, o trabalho sem Ele é apenas uma pena imposta pelo pecado e uma forma de ganhar dinheiro. Pela graça, conquistada na Cruz, e celebrada na liturgia – e conferida também na liturgia –, o trabalho se converte em um meio pelo qual podemos, mediante as obras de nossas mãos e o fruto de nosso intelecto, dar “maior glória à Trindade e benefício à humanidade inteira”, no dizer do Pe. Rivero.
No trabalho, como na cultura, o homem reflete o que celebrou na liturgia. A liturgia é a obra de Deus no homem, e o trabalho e a cultura são obras do homem com Deus. Para que isso seja verdade, o homem precisa estar em graça, e isso só se consegue com a plena participação sacramental. Da liturgia, então, parte o homem para santificar o mundo do trabalho e da cultura. “Liturgizados”, o trabalho e a cultura adquirem novo significado. O Espírito Santo deifica o homem na liturgia para que ele humanize o mundo, e isto ele o faz pelo labor e pela construção cultural. A cultura e o trabalho, prossegue o Pe. Rivero, são como uma iconografia do Espírito Santo e do homem, e se assim não forem, serão sinais do inimigo do homem, o diabo.
A cultura e o trabalho, transformados pela graça, através da ação do homem transformado por Deus na liturgia, nos simboliza a beleza. E a beleza, bem o sabemos por Santo Tomás, tem a Deus por fonte. Não é a beleza um aspecto dos ritos litúrgicos?
Não há momento, período, recinto de nossa pobre existência nesta terra de exílio em que a luz da liturgia não possa ou não deva chegar. Da oração ao trabalho e a cultura, do espiritual ao material. E, por conta disso, da vivência plena da liturgia em cada circunstância de nosso viver, brotará um maior compromisso com Deus, Nosso Senhor, com a Igreja por Ele fundada, com a comunidade humana, com os pobres, nossos irmãos a quem devemos compaixão, e com todos aqueles a quem somos destinados para fazer apostolado.
Sem um coração completamente transformado pela vida da liturgia, não desempenharemos a contento a missão que nos foi designada por Deus. Ao contrário, vivendo a vida da liturgia plenamente, faremos vida a oração, o trabalho, a cultura, a sociedade, os pobres, o apostolado. A liturgia dará vida a tudo isso, e será mais vida à medida em que transportarmos o que celebramos para dentro do que vivemos.