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terça-feira, 22 de março de 2016

O mito do Evangelho Dialogado com o povo

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A Semana Santa. Certamente a mais bela semana que a Liturgia nos propicia, com seus ritos diferenciados e solenes, marcados por profundo significado simbólico e que procuram, a seu modo, repetir certos gestos e passagens de Nosso Senhor para atualizá-los, torná-los presentes.

(Foto: New Liturgical Movement)
A inabitualidade destes ritos, aliada a sempre habitual e exagerada "criatividade" das equipes de Liturgia, permite que surjam abusos litúrgicos mesmo naquelas comunidades onde isto acontece raramente nas demais celebrações do ano.

Um destes abusos, amplamente difundido, trata-se de certo diálogo entre povo e leitores durante a Proclamação do Evangelho da Paixão do Senhor no Domingo de Ramos e na Sexta-Feira da Paixão do Senhor. 

Este artigo, portanto, pretende demonstrar, citando extensa legislação litúrgica, que o povo não toma parte na proclamação da História da Paixão, não devendo proferir nenhuma fala.

A Proclamação do Evangelho na Liturgia

Primeiramente, recordemos que a Proclamação do Evangelho na Liturgia compete, por prioridade, ao diácono, ao sacerdote concelebrante ou ao próprio sacerdote celebrante:
"Por tradição, o ofício de proferir as leituras não é função presidencial, mas ministerial. As leituras sejam pois proclamadas pelo leitor, o Evangelho seja anunciado pelo diácono ou, na sua ausência, por outro sacerdote. Na falta, porém, do diácono ou de outro sacerdote, o próprio sacerdote celebrante leia o Evangelho; igualmente, na falta de outro leitor idôneo, o sacerdote celebrante proferirá também as demais leituras."
(Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª ed., n. 59; grifos meus)

"A tradição litúrgica  assinala a função de proclamar as leituras bíblicas na celebração da missa a ministros: leitores e diácono. Mas se não houver diácono nem outro sacerdote, o celebrante deve ler o Evangelho, e no caso em que não haja leitor, todas as demais leituras.

"Na liturgia da palavra da missa, cabe ao diácono anunciar o Evangelho, fazer de vez em quando a homilia, se parecer conveniente, e propor ao povo as intenções da oração universal."
(Proêmio do Lecionário, n. 49-50; grifos meus)

A Proclamação da História da Paixão

A proclamação da Paixão, contudo, trata-se de caso à parte, apresentando regras próprias, como veremos a seguir. Uma de suas características únicas é que a leitura é tradicionalmente dividida em três partes. A motivação, penso eu, é pastoral, devido a seu longo tamanho. 
"A história da Paixão reveste-se de particular solenidade. É aconselhável que seja cantada ou lida segundo o modo tradicional, isto é, por três pessoas que representam a parte de Cristo, do cronista e do povo."
(Congregação para o Culto Divino. Paschalis Sollemnitatis sobre a preparação e celebração das festas pascais, n. 33)
Esta divisão (um leitor para as falas de Nosso Senhor, outro serve de Narrador e o último faz as vezes dos demais personagens) não é casual. O próprio lecionário já a apresenta.

Então, sim, pode-se dizer que se trata de um Evangelho dialogado. Porém, quem pode exercer o ofício da sua leitura são primeiramente os diáconos e depois os sacerdotes; somente na falta destes é que leigos podem fazê-la.
"Começando o canto antes do Evangelho, todos, com exceção do Bispo, se levantam. Não se usa incenso nem velas durante a história da Paixão. Os diáconos que vão ler a história da Paixão pedem e recebem a bênção, como ficou dito acima no n. 140. Em seguida, o Bispo tira a mitra, levanta-se e recebe o báculo: e lê-se a história da Paixão. Omite-se a saudação ao povo e o sinal da cruz sobre o livro.

"Depois de anunciada a morte do Senhor, todos se ajoelham, e faz-se uma breve pausa. No fim, diz-se: Palavra da salvação, mas não se beija o livro."
(Cerimonial dos Bispos. Domingo de Ramos, na Paixão do Senhor, n. 273; grifos meus)
A seção do Cerimonial dos Bispos que trata da Celebração da Paixão do Senhor apresenta termos idênticos: "Os diáconos que vão ler a história da Paixão" (n. 319)

"A Paixão é cantada ou lida pelos diáconos ou sacerdotes ou, na falta deles, pelos leitores; neste caso, a parte de Cristo deve ser reservada ao sacerdote. A proclamação da paixão é feita sem os portadores de castiçais, sem incenso, sem a saudação ao povo e sem o toque no livro; só os diáconos pedem a bênção do sacerdote, como noutras vezes antes do Evangelho.

"Para o bem espiritual dos fiéis, é oportuno que a história da Paixão seja lida integralmente sem omitir as leituras que a precedem."
(Congregação para o Culto Divino. Paschalis Sollemnitatis sobre a preparação e celebração das festas pascais, n. 33; grifos meus)
A seção da Paschalis Sollemnitatis que trata da Celebração da Paixão do Senhor referencia o ponto anterior: "A história da paixão do Senhor segundo João é cantada ou lida, como no domingo precedente (cf. n. 33)"

"O leitor leigo pode mesmo ser chamado, na falta de ministros ordenados, a proclamar uma parte do Evangelho da Paixão do Senhor, no Domingo de Ramos e na Sexta-Feira da Paixão do Senhor.

Na falta de um, dois ou três diáconos ou presbíteros, o Evangelho da Paixão e da Morte do Senhor pode ser proclamado por outros clérigos, ou mesmo por leigos, vestidos porém com vestes litúrgicas»."
(O Evangelho da Paixão (25/03/1965) apud Textos sobre o leitor litúrgico nos documentos da Igreja a partir do Vaticano II, n. 3; grifos meus)

Conclusão

Como se pode observar a partir da legislação litúrgica citada, ainda que a divisão tradicional em três partes não seja utilizada, não há menção alguma a participação do povo assumindo uma das partes da Proclamação da Paixão. (Aliás, não fosse a presença de retroprojetores ou projetores digitais em muitos de nossos templos, tal prática seria inviável.)

Para tornar mais claro um possível ordenamento para a Proclamação da Paixão, apresento um resumo abaixo, em ordem de preferência:
  1. Três diáconos;
  2. Na falta de um ou mais, sacerdotes (um deles faz a parte de Cristo);
  3. Na falta de um ou mais, leitores instituídos (clérigos ou leigos);
  4. Na falta de um ou mais, leitores extraordinários.
Uma configuração mínima seria o próprio celebrante lendo as falas de Nosso Senhor e dois leigos, leitores extraordinários, fazendo os papéis de narrador e dos demais interlocutores.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Tecnologia e Liturgia

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Por: Prof. Carlos Ramalhete.

A liturgia é, como a Fé e demais graças, um presente de Deus. E, como fazemos com as graças, temos a tendência de estragar tudo, de trocar nossa progenitura por um prato de lentilhas e a Eternidade por uma alegriazinha boba qualquer agora. Para piorar a situação, os avanços tecnológicos exacerbaram a tentação de atrapalhar a liturgia. E quando à natureza humana e à sua amplificação — para o bem e para o mal — pela tecnologia se junta a crise litúrgica que seguiu o Concílio Vaticano II, com invencionices delirantes tomando o lugar do que manda a Igreja e maus hábitos se instalando e sendo tratados como a regra, a situação fica realmente difícil.

igreja moderna
Ensinou-nos o Santo Padre Bento XVI que, das más modas que seguiram a reforma litúrgica paulina, a mais grave é a celebração da Santa Missa com o padre virado ao contrário, enfiado atrás do altar e olhando para as pessoas, substituindo a multidão que se dirige a Deus por um círculo fechado em si mesmo.

“Círculo fechado em si mesmo” é exatamente o que o Pecado Original faz de cada um de nós. Adão, que antes da Queda referia-se a Eva como “carne da minha carne, sangue do meu sangue”, imediatamente após a Queda tratou-a como “a mulher que pusestes ao meu lado”. Ele se afastou dela, fechou-se em si mesmo. E a liturgia, decididamente, não pode ser algo fechado. Ao contrário, ela é e tem que ser percebida como a maior de todas as aberturas: a abertura do temporal ao Eterno, do humano ao divino, do finito ao Infinito.

Os outros erros e problemas litúrgicos são, em enorme medida, frutos do erro tão bem apontado por Sua Santidade o Papa. É quando o padre, enfiado atrás do altar, vê-se olhando para o povo que a humaníssima tentação de agradar a todos, de dar atenção às pessoas em detrimento de Deus, torna-se ainda mais forte. É quando o padre vê diante de si aquela multidão, que tanto parece uma platéia, que lhe parece evidente que eles devem ser capazes de ouvir o que ele tem a dizer, de — pior ainda — ouvir sua voz. Ora, a voz que deve ser ouvida é a da Igreja, a de Deus, certamente não a do padre (ou do comentarista, ou da Pastoral Litúrgica, ou de quem quer que seja que tenha uma voz particular). E, finalmente, é por se formar este estranho círculo que surge a tentação de “equilibrá-lo”, forçando a assembleia a um protagonismo exagerado em que das respostas passa-se a gestos (“balançar folhetinhos”, etc.) e dos gestos a, quase, coreografias. Ao mesmo tempo, o presbitério nega seu nome e se enche de leigos, “equilibrando” os dois lados dos estranhos parênteses de gente dentro dos quais jaz uma mesa, usada à guisa de altar e apontando para as pessoas em volta ao invés de para Deus.

Vejamos, então, como a tecnologia moderna literalmente amplia e ilumina estas tentações, afastando ainda mais a liturgia do seu verdadeiro espírito e tornando ainda mais difícil a participação real e frutuosa, que ocorre não quando nos mexemos muito, mas quando nos unimos ao Sacrifício Redentor, ali tornado novamente presente de forma incruenta para nossa santificação.

Para isso, convém dar uma régua de medição. A mais perfeita, claro, é a que o próprio Espírito Santo suscitou na Igreja ao longo dos séculos: a tecnologia da arquitetura sacra clássica, perfeitamente adequada à liturgia e a seu espírito.

Quando visitamos uma igreja pré-moderna, vemos alguns elementos arquitetônicos comuns, perfeitamente adequados à liturgia. O primeiro deles é a posição do altar. O altar-mor, em uma igreja clássica, é o ponto focal de toda a edificação; quando entramos na igreja o nosso olhar imediatamente é atraído para a extremidade oposta à da porta, em que o altar-mor, como uma imensa escada, aponta o caminho do Céu. No primeiro degrau, o túmulo dos mártires (dentro da pedra do altar há sempre relíquias de mártires); no segundo, o próprio Senhor Sacramentado, descido dos Céus, para nos “puxar para cima”; nos demais degraus, os focos de luz das velas apontando sempre para cima, até encontrarmos, no lugar para onde somos chamados a ir, a imagem de alguém que, nas palavras de São Paulo, “venceu a corrida”: um Santo, que um dia esteve como nós diante do altar e hoje, pela graça de Deus, está sobre ele.

Recuando deste ponto focal absoluto, que é o altar-mor, descemos três degraus “humanos”; assim como os “degraus” gigantescos do altar que só as almas sobem, os três degrauzinhos do presbitério, que o corpo do padre agindo na Pessoa de Cristo sobe e desce durante a Missa, fazem parte desta escalada do profano ao Sagrado, do transitório ao Permanente, do finito ao Infinito. O padre sobe os degraus como um ser humano que se aproxima de Deus, e os desce como Deus que se aproxima dos homens; fala a Deus e fala aos homens, virando-se para o altar ou para a assembleia.

Recuando ainda um pouco, encontramos a Mesa de Comunhão, em que ocorre para nós o mais íntimo e (quando percebemos o que realmente ocorre) apavorante encontro do humano com o Divino: a recepção do Corpo e Sangue do próprio Senhor, do mesmíssimo Corpo que nasceu da Virgem Maria e foi elevado na Cruz. A Mesa de Comunhão parece uma cerca, mas não é. Na verdade, ela é uma rampa de lançamento, verdadeiro degrau inicial daquela mesma escada. Ela separa a nave da igreja, lugar onde fica o profano que busca o Sagrado, do presbitério, lugar do Sagrado que vem ao encontro do profano. Ao mesmo tempo, quando nos ajoelhamos junto a ela para receber o próprio Senhor sacramentado, somos elevados pela graça divina e escalamos, puxados por Deus, aquela escada mística de Jacó cuja figura nos contempla do altar-mor.

Aquém da Mesa de Comunhão, estamos na nave da Igreja: um amplo e altíssimo espaço vazio (a adição de bancos e cadeiras é muito recente), coberto apenas de luz e de cor. Dos lados, abaixo dos vitrais, outros altares, versões pequenas do altar-mor, servem para que o Santo Sacrifício possa ser oferecido simultaneamente por vários sacerdotes; neles, ainda, a Missa de um padre solitário não interfere na meditação de quem esteja a rezar sozinho ou a adorar o Santíssimo Sacramento. Cada fiel é livre para participar de uma das várias Missas, cada uma em um ponto da liturgia, ou para ir de Consagração em Consagração, ou ainda para ignorá-las todas, ou mesmo participar à distância de todas. Não há nem pode haver ali nenhum círculo fechado; ao contrário, cada fiel está aberto para todos os lados, e vários focos de abertura do temporal ao Eterno — em cada altar lateral — brilham simultaneamente. É um lugar de encontro, um “parlatório” múltiplo e variegado dos muitos homens e o único Deus, em que cada homem não deixa de ser homem, mas não faz nem de si mesmo nem dos demais homens o foco de sua atenção.

Acima de todos a luz do sol entra, filtrada e colorida pelas imagens sacras dos vitrais. A luz serve para que possamos enxergar. Mas numa igreja clássica há dois tipos de luz: a que Deus faz, que entra pelos vitrais, e a que o homem faz para Deus, concentrada no altar, na forma de velas. A luz de Deus é mais forte e mais bela, mas a Igreja, na sua sabedoria, a filtra em cores. Os vidros são todos coloridos, porque a luz nua do sol ilumina demais. Não convém haver tanta luz, porque a igreja não é tanto lugar de apreciação sensível quanto de apreciação mística: o que acontece de mais importante ali é invisível, e a beleza das luzes coloridas dos vitrais só faz sublinhar o Mistério maior que ocorre sobre o altar, ao emoldurá-lo em cores. Do mesmo modo, as paredes de uma igreja clássica muitas vezes são revestidas de pinturas coloridas, que se unem à luz dos vitrais para nos dar ao mesmo tempo uma verdadeira aula — pois cada figura que ali vemos tem seu sentido e sua simbologia — e um banho de beleza em estado bruto. A vista da nave da igreja, a vista do lugar de onde nós, leigos profanos, nos aproximamos do Infinito e Sagrado, é a mais bela vista do mundo. Na verdade, a beleza é bem maior vista da nave que do próprio presbitério, de onde praticamente só se pode ver o próprio altar, aquela escada altíssima que lembra ao humano sacerdote o quanto ele tem que subir, o quanto lhe falta escalar para alcançar a santidade daquele outro servo de Deus cuja imagem está no mais alto dos degraus.

Na própria nave, vemos ainda dois púlpitos, um de cada lado. São balcõezinhos altos, para uma só pessoa, donde o sacerdote pode falar e ser ouvido, por estar acima das cabeças dos presentes. O som do púlpito alcança a igreja inteira, e se a multidão estiver — como deve estar — silenciosa, cada palavra dita dali é ouvida sem dificuldade por todos os presentes.

Por cima da porta principal, com a mesma tecnologia do púlpito, o coro ao mesmo tempo esconde as faces e eleva as vozes dos cantores e organista: a música parece vir de toda parte e de lugar nenhum ao mesmo tempo. Dos lados do coro, mas fora da nave e muito mais altos, os sinos das torres levam para o mundo lá fora a mensagem de salvação da Igreja.

Vejamos agora como a tecnologia moderna perverteu aquilo que o Espírito Santo, ao longo dos séculos, suscitou na Igreja.

A tecnologia mais problemática para a liturgia é a eletricidade. Costumo dizer que se acabasse a eletricidade, a imensa maioria dos problemas litúrgicos desapareceria instantaneamente; quem nunca passou pela experiência de ir à Missa e, devido a um blecaute, ter a deliciosa surpresa de participar de uma Missa infinitamente mais adorável e santificante, celebrada sem eletricidade para atrapalhar?

A eletricidade tem duas maneiras principais de estragar a liturgia, amplificando as tentações até o ponto em que elas escondem a liturgia e fazem crer que outra coisa, completamente diversa, esteja a acontecer ali. 

A primeira delas é a amplificação sonora. Os efeitos da amplificação sonora sobre a liturgia são devastadores. Como vimos anteriormente, as soluções da tecnologia clássica da Igreja fazem com que — havendo silêncio da assembleia — a voz do sacerdote falando do púlpito, bem como as vozes do coro e do órgão, cheguem sem problemas a todos os ouvidos. Não é, todavia, audível o que o padre diz quando está diante do altar. O próprio Concílio de Trento anatemizou quem dissesse que estas palavras deveriam ser audíveis pela assembleia, porque não se trata de um detalhe irrelevante, mas de um ponto de teologia importantíssimo: o que o padre diz junto ao altar não é para nossos ouvidos; ele está se dirigindo a Deus, não a nós. Ele fala, sim, em nosso nome, mas as palavras que enuncia são as palavras da Igreja, que temos no Missal. Ele não diz outra coisa, não inventa nem pode inventar nada, e, aliás, por que o faria, se é só Deus quem o ouve? Quem quer saber o que ele diz pode e deve abrir o Missal e ler, sem ter como cair na tentação de achar que é para si que fala o sacerdote.

Já, por outro lado, as palavras de Deus para o homem, na Liturgia da Palavra e na homilia, são e devem ser audíveis: para isso serve a posição elevada do púlpito, que ao mesmo tempo faz chegar a voz do sacerdote a toda a igreja e força a assembleia ao silêncio.

Quando a voz do sacerdote é amplificada, desaparece completamente a distinção que já se tornara difícil de perceber com a estranha moda de colocar o padre atrás do altar, eliminando a clareza de seus atos ao não mais fazê-lo, como manda o Missal, voltar-se para a assembleia ou para o altar. Tudo o que o sacerdote diz passa a ser enorme, altíssimo, tonitruante e, pior de tudo, aparentemente voltado aos fiéis. É como se ele estivesse falando com eles todo o tempo, quando na verdade ele é o intermediário entre eles e Deus, e ora fala pela Igreja a Deus, ora fala por Deus a Seu povo. Com um microfone, a tendência é desaparecer o sacerdote — que age na Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo — e surgir a pessoa do padre Fulano, que deveria desaparecer completamente durante a Santa Missa para dar lugar ao Cristo.

Um frade já idoso uma vez comentou comigo o quanto lhe agastava ver que nas fotos dos convites das raras ordenações de sua congregação nunca o novo padre aparecia com o Cálix, como se costumava fazer. Ao contrário, disse-me ele, todos posam para a foto com um microfone na mão Poucas coisas são tão representativas da nossa sociedade do espetáculo quanto o fetiche do microfone; as pessoas gostam de ver-se fotografadas segurando um microfone à frente dos lábios, e dar ao vulgo um microfone é incitá-lo a falar. O mesmo ocorre, é claro, com os sacerdotes, que são seres humanos como todos nós, mas que sofrem tentações muito mais fortes por serem troféus muito maiores para os demônios. O microfone é uma tentação enorme, que muitas vezes se disfarça e se desculpa. E aí temos o padre que manda um exército de ministros extraordinários ilicitamente distribuir o Santíssimo em tempo recorde nas Missas dominicais, para em seguida sentar-se e ficar por vinte minutos falando platitudes ao microfone, convencido pela própria vaidade e pelo demônio de estar ajudando na ação de graças dos fiéis. Ora, ele está calando a voz do Senhor ao encher a nave com a própria voz, e está pregando novamente na cruz as mãos do Senhor ao substituir ilicitamente suas mãos sacerdotais, ungidas pela Igreja para distribuir a graça divina, pelas mãos profanas de leigos, com a desculpa do tempo gasto… que ele mesmo gasta com seu discurso vazio ao microfone logo em seguida.

Do mesmo modo, com a voz amplificada é facílimo e comuníssimo que o padre invente, parafraseie e improvise ao longo de toda a liturgia. De um inútil e desrespeitoso “bom-dia” no início da Missa a longas elucubrações e paráfrases em cada um dos já demasiados “ad libitum” da liturgia paulina, o prazer de ouvir a própria voz leva o padre a cair na tentação de calar a Igreja para falar pessoalmente, de negar o Cristo para ele mesmo crescer na atenção da assembleia, substituindo e adicionando suas palavras todo o tempo.

A amplificação ainda apresenta outro fator tremendamente perturbante: o som — como o do coro na tecnologia litúrgica clássica — vem de todos os lugares e de lugar nenhum. Todos ouvem a voz tonitruante que sai de inúmeras caixas de som, mas descobrir de onde ela vem originalmente, onde está a pessoinha que fala ao microfone, demanda atenção. Com isso, a liturgia — já desprovida dos marcadores visuais e auditivos mais evidentes, como mencionei acima — torna-se algo ainda mais confuso. O som amplificado é um nevoeiro auditivo, que obnubila qualquer direcionamento da atenção ao fazer com que toda voz venha de todos os lados ao mesmo tempo.

Em uma situação moderna normal em que haja amplificação — um espetáculo musical, por exemplo — é normalmente claro de onde vem o som, por se tratar de um monólogo completamente natural. É uma pessoa, ou uma banda, que dirige a uma plateia o som que produz. Já na liturgia, como vimos, o som só deveria ser dirigido do altar à assembleia parte do tempo; o sacerdote é, ele também, membro da assembleia, e é em nome dela que ele se dirige ao altar. O distante sussurro do sacerdote junto ao altar, com uma assembleia perfeitamente silenciosa diante do magno Mistério que ali se torna presente, deveria ser para todos nós ocasião de unirmo-nos em oração a ele, de, nós também, virarmos para o altar e rezar. Do mesmo modo, a voz dele vindo do púlpito deveria nos levar a prestar atenção e fazer silêncio.

Mas quando o que temos é uma voz tonitruante que vem de todos os lados ao mesmo tempo, a tendência humana é, ao contrário, diminuir a atenção; a voz se torna um ruído ambiente, não uma voz que fala conosco. Afinal, quem fala conosco se dirige a nós, e a incorporeidade daquela voz a torna impessoal.

Quando diminuímos a atenção, fatalmente surgem conversas paralelas, que por sua vez levam a aumentar ainda mais o volume daquela voz que vem de todos os lados ao mesmo tempo, tornando-a ainda mais confusa pela soma de dezenas de cochichos paralelos igreja afora.

Vejam que armadilha demoníaca: para o padre, o microfone tenta a aumentar-se e diminuir ao Cristo, a fazer da liturgia um seu espetáculo pessoal; já para a assembleia, a amplificação faz com que o padre desapareça e com que o que ele diz seja algo a que se presta menos atenção.

E a amplificação artificial, para piorar a situação, não se restringe ao sacerdote. Do mesmo não-lugar de que vem a voz do padre, vêm as vozes, violões e percussões da bandinha de música, que igualmente cai na tentação de se achar em um espetáculo, que já vitimara o padre. E tome cantor falando platitudes ao microfone com a desculpa (para si mesmo) de estar ajudando as pessoas a fazer ação de graças, e tome tocador de violão a fazer arpejos durante a Consagração para “criar um climinha”, como se ele fosse um pianista de cinema mudo. E tome invencionices melódicas, rítmicas e harmônicas, normalmente ainda pioradas quando, por qualquer razão que seja, a bandinha está em um lugar em que ela esteja à vista da assembleia. A tentação de ser a estrela, de dar um espetáculo, é uma tentação demasiadamente presente para que possamos nos dar ao luxo de ignorá-la como vem sido feito na maior parte das paróquias.

E, finalmente, ainda há as outras vítimas do microfone: as pessoas que são levadas, por razões pseudo-pastorais, a ir lá na frente falar alguma coisa (leituras, comentários, avisos, tanto faz), numa espécie de contraponto geralmente forçado, constrangido e tímido aos espetáculos em competição do padre e da bandinha. Estes falam longe do microfone ou falam alto demais, usam enunciações e prosódias estranhas, e fazem, em geral, com que se perca ainda mais o senso de sacralidade da liturgia. Já é ruim que haja o que foi descrito acima; quando se tem regularmente breves interrupções em que alguém tem que aprender em pleno voo como se usa o microfone, a pouca fluidez litúrgica que ainda sobrava em geral desaparece completamente, fazendo com que recrudesçam os papos paralelos (tornados possíveis pelo volume da amplificação) e diminua ainda mais a atenção geral ao que realmente está acontecendo ali.

Finalmente, a eletricidade ainda tem efeitos sonoros decorrentes não da amplificação, mas do uso de aparelhos de ar condicionado e ventilador. Estes aparelhos produzem um ruído a que se chama “ruído branco”, que consiste em um ruído contínuo e aleatório que se distribui por um amplo espectro. O ruído branco tem a propriedade de fazer desaparecer, por mistura, a clareza dos demais sons. É por isso que é dificílimo ouvir o que dizem na mesa ao lado em um restaurante lotado, por exemplo: o ruído branco resultante da soma de todas as conversações faz com que aquela voz a um metro de distância, que ouviríamos perfeitamente em um ambiente silencioso, simplesmente desapareça. Na igreja, o ruído branco dos ventiladores ou ar condicionado faz com que as conversas cochichadas sejam inaudíveis, e não atrapalhem individualmente quem está ao redor. Ora, isso faz com que haja mais e mais conversas cochichadas, o que aumenta ainda mais o volume do ruído branco, pela soma dos cochichos ao ruído das máquinas, e mistura mais ainda o som do microfone, levando os técnicos a aumentá-lo ainda mais, o que por sua vez leva as pessoas a ter ainda menos pejo de conversar, etc., num ciclo vicioso anti-litúrgico verdadeiramente demoníaco. Comparem isso com uma igreja forçada ao silêncio para ouvir a voz em amplificação que vem do púlpito, e fica fácil entender do que estou falando.

A outra maneira pela qual a eletricidade estraga a liturgia é pela iluminação elétrica. A tecnologia luminosa clássica da Igreja consiste, como vimos anteriormente, na combinação da luz branca e nua, porém pequena, das velas com a luz forte, porém matizada e colorida dos vitrais. As velas atraem a atenção para o altar, enquanto as imagens dos vitrais suscitam a meditação em quem as contemplar, enquanto inundam a igreja de uma luz que — como o som do coro — é suave e parece vir de todos os lados ao mesmo tempo.

Já a iluminação elétrica que hoje encontramos na maior parte das paróquias é extremamente semelhante à que vemos, por exemplo, em agências bancárias: uma luz forte, branca, dura e brutal, que ilumina tudo por igual e a tudo faz igual. A nave da igreja torna-se igual ao presbitério, que se torna igual ao altar (aliás desaparecido na forma de uma mesa, muitas vezes difícil de encontrar). As velas desaparecem, com seu brilho muitas vezes ofuscado até mesmo pelos reflexos da luzes fortíssimas do teto nos seus próprios candelabros, por exemplo. Todo o simbolismo das velas se perde, toda a riqueza das mensagens de luz dos vitrais desaparece, e a igreja toda se vê igualada, toda ela perfeitamente iluminada e perfeitamente indigna de atenção, como uma agência de banco. Cada sujeirinha do chão é visível, mas o altar é algo que se precisa procurar (mormente quando o som também vem de todos os lados ao mesmo tempo!). As roupas das pessoas da assembleia aparecem plenamente, com suas cores e texturas a despertar curiosidade, à luz brutalista da eletricidade, mas as vestes litúrgicas — que numa igreja clássica refletiriam sozinhas as luzes das velas e atrairiam a atenção de todos — parecem uma decoração de um canto da igreja; um espetáculo de teatro teria uma diferença de iluminação entre o palco e a plateia, mas nas paróquias de hoje o presbitério e a nave são banhados pela mesma luz dura e feia, sem que se saiba o que é o quê.

A luz elétrica, assim, como a amplificação artificial do som, mistura tudo e elimina as diferenças, trabalhando ativamente para frustrar a liturgia da Igreja. Se temos consciência destas tentações que venho de descrever, fica mais fácil tentar vencê-las. Se não tivermos, todavia — e não a ter é a regra hoje em dia — a tendência é cairmos cada vez mais fundo nelas.

Que São Gregório Magno, São Pio V e São Pio X nos ajudem a vencê-las, sempre!

Publicação original disponível em: medium.com


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