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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

A revisão do rito bracarense



Tratando mais uma vez a temática do rito bracarense, hoje irei abordar a questão do destino do rito após o Concílio Vaticano II; para tal, nada melhor do que recorrer ao Relatório apresentado à Sagrada Congregação para o Culto Divino. Como poderão ou não saber, o rito bracarense foi dos poucos ritos ocidentais que não foi revisto/reformado aquando da revisão do rito romano. Alguns de vós poder-se-ão perguntar o que aconteceu ao rito durante os anos da reforma litúrgica e porque tal nunca se deu neste caso. Tendo acesso a uma cópia do relatório da reforma do rito durante os anos tempestuosos após o CVII, gostaria de partilhar o seu destino, com vista a esclarecer porque o rito está quase desaparecido tirando uma ou outra celebração esporádica.

A Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium, tem a dizer sobre ritos locais o seguinte:

4. O sagrado Concílio, guarda fiel da tradição, declara que a santa mãe Igreja considera iguais em direito e honra todos os ritos legitimamente reconhecidos, quer que se mantenham e sejam por todos os meios promovidos, e deseja que, onde for necessário, sejam prudente e integralmente revistos no espírito da sã tradição e lhes seja dado novo vigor, de acordo com as circunstâncias e as necessidades do nosso tempo. [ênfase meu]

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Ao longo de todo o relatório, sempre que se menciona SC, sobretudo no que diz respeito ao rito bracarense, parece que o pressuposto é de que a revisão era obrigatória (talvez por factores historico-sociais?). Apesar do rito ter sido revisto apenas 50 anos antes, parece que se julgou necessário revê-lo mais uma vez. Todavia, os motivos que levaram à edição dos 1920's – recuperar o que era verdadeiramente bracarense e eliminar certas imposições romanas – não estiveram na base da desejada reforma após o Concílio Vaticano II.

A introdução do relatório, tratando a temática da reforma, tem o seguinte excerto da Nota Pastoral sobre a Constituição sobre a Sagrada Liturgia pelo ordinário diocesano:

[…] a reforma litúrgica é mais um espírito do que a alteração das cerimonias. Por isso, ir-se-á devagar, tanto mais que a obra completa não e para ser feita por uma geração. A nós compete começar o movimento que um dia terá corpo perfeito pelo seu desenvolvimento natural.

Trata-se duma prevenção de altíssimo valor prático, até para não termos de nos arrepender por haver andado depressa demais. Neste capítulo de inovações litúrgicas, vai melhor quem for mais devagar. […]


O ordinário continua, dizendo que o rito deverá ser renovado, mas não antes do romano (parece implicar ou que o rito bracarense era subordinado ao romano ou que a reforma do rito romano serviria de padrão para o bracarense). Quaisquer elementos que forem comuns a ambos os ritos estão sujeitos às novas normas litúrgicas, embora não necessariamente de imediato nem a partir do dia 7 de Março.

Numa carta ao clero no dia 17 de Dezembro de 1967 o ordinário diocesano salienta que: 

 […] pela supressão de algumas cerimónias em resultado dessa adaptação e pela aproximação do romano ao rito bracarense noutras, pelo menos na Santa Missa, pouco resta que distinga os dois ritos. […]
[…]
Se chegar ao fim, em breve, como se espera, e for aprovada a reforma do missal romano em estudo, poderá dizer-se que do antigo missal mal vai ficar pedra sobre pedra.
E na adaptação posterior do bracarense a luz do romano, que ficara nele de próprio a justificar existência a parte?

A 25 de Novembro de 1969 ouvimos do cabido que "o Cabido, na sua maioria, é da opinião que se deva procurar a sua [rito bracarense] sobrevivência". Apenas um cónego não concordou, tendo ficado registado o seguinte depoimento:

Ao signatário parece não deverem imiscuir-se particularidades do rito bracarense na feliz urdidura do ordo pós-conciliar. Ou continue, intacto e indemne, o ordinário bracarense, ou se aceite o opus perfectum do novo ordinário latino universal.

Parece que nesta altura existiria já alguma experimentação que, mais adiante no relatório depuramos, terá sido autorizada pelo ordinário. Pelo cariz dos comentários, parece-me que a reforma do rito bracarense não seguia pelo rumo pretendido.
Com que se pareceria está reforma? No meu parecer, um híbrido entre o rito bracarense e o missal Paulino. Chego a está conclusão a partir da introdução do relatório, que menciona que o rito revisto utilizaria do novo ordo romano o que fosse comum a ambos, e o que fosse particular ao bracarense seria adicionado posteriormente. Para este efeito estabeleceu-se um comité que iria estudar o rito bracarense e identificaria as suas particularidades. O comité apresentou a 25 de Novembro de 1969 a seguinte lista:

Ritos Iniciais:
  • Preparação do cálice
  • Bênção da água
  • Ave Maria
  • In nomine Patri… Sancti Spiritus adsit…
Liturgia da Palavra: como no rito romano
Liturgia Eucarística:
  • Ofertório: Acceptabilis sit… (hóstia): Ofertório: Offerimus tibi Domine… (cálice)
  • Genuflexão dupla
  • Uso da pala na elevação do cálice
  • Segunda elevação da hóstia
Rito da Paz
  • Domine Iesu Christe…
Preparação para a Comunhão:
  • Domine Sancte, Pater…
Conclusão:
  • Bênção: In unitate Sancti Spiritus… 

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Celebração do rito bracarense durante a semana da Paixão

Inquiriram-se membros do clero e leigos relevantes da arquidiocese a propósito do rito e da sua reforma. O que segue, embora breve, é uma amostra reflectiva da atitude geral para com o rito da arquidiocese:
  • O comité para a aplicação de Sacrosanctum Concilium é da opinião que o missal de Paulo VI devera ter prioridade na diocese. Ademais, o novo ordo está tão bem concebido que "a introdução de elementos estranhos – mesmo de tradição venerável – diminuiria o seu lustre." Assim sendo, a preservação das características bracarenses deverão ser confinadas a Sé Primacial.
  • Dever-se-á pedir à Santa Sé para que só se utilize o rito na Sé; os livros romanos são mais fáceis de gerir.
  • As diferenças entre ambos os ritos são mínimas, de tal modo que não merecem que se peça à Santa Se para as manter (ou então, apenas na Sé).
  • Devido à celebração da Missa ser transmitida na televisão a utilização do rito bracarense confundirá “pessoas menos evoluídas”.
  • “Antes haja coragem para romper com tradições veneráveis e ancestrais. Vale mais a participação do povo, deste povo moderno, tão habituado a expressões claras, inteligíveis e traduzíveis no seu modo profano de falar.”
  • “ [...] muitas pessoas [...] muitas vezes se queixaram todos do mesmo rito.”
  • “ [...] algumas rubricas mesmo ridículas.”
  • “algumas delas [particularidades] estão totalmente deslocadas, como [...] e preparação do cálice no principio.”
  • Deverá ser confinado a Sé, mas não a celebrações em que os leigos possam participar uma vez que não estão “preparados para participar activamente”.
  • Deve-se adoptar o novo ordo porque está "em mais perfeito contacto com o povo e portanto maior poder santificador, tornando-se mais simples, mais atraente, mais sóbrio, rápido e dinâmico, por conseguinte mais adaptado aos nossos tempos.
  • “Sermos todos iguais na Igreja de Deus, una e uniforme, e a nossa grande glória de sacerdotes católicos, e não queremos outra [refere-se aqui ao novo ordo]. […] Os nossos fiéis e sacerdotes e bispos andam por toda a parte do país e do estrangeiro, tomando parte activa no culto católico, que tem de ser igual para ser bom.”
No meio destas críticas todas encontramos um sacerdote com voz profética:

Deve notar-se que abolir o rito é ir contra uma veneranda tradição e contra o património religioso e cultural da diocese. E esta atitude destrutiva talvez venha a ser asperamente censurada num futuro mais ou menos próximo, quando, passada esta febre de reformas (e, em vários casos, de destruições), se tiver de repensar e de reassumir muitos dados tradicionais agora postos em causa e ate repudiados.
Alem disso, estando hoje no espírito da Santa Sé garantir a unidade dentro do essencial e aceitar no restante a diversidade de expressões de culto, autorizando a introdução de elementos tradicionais e de folclore na própria Santa Missa [dá-se aqui o exemplo de ordenações numa catedral africana], mal ficaria rejeitarmos formulas e ritos litúrgicos com séculos de tradição e aprovados pela Santa Sé.
[…]
As modificações introduzidas no novo Ordo Missae romano são tão profundas e extensas que, pode dizer-se, com elas começa um novo rito e não apenas uma reforma existente. [...]

Desta breve amostra podemos ver que a maior parte do clero e dos leigos eram favoráveis ao abandono total do rito bracarense. Uma e outra vez sugere-se que o rito seja confinado à Sé, referindo-se que é uma relíquia que aí se deve guardar apenas para mostrar em determinados dias (alguns chegam ao cúmulo de lhe chamar peça de museu). Que a arquidiocese tenha seu próprio rito é encarado como algo vexaminoso, dizem alguns sacerdotes, uma relíquia dum período medieval atrasado que deveria ser abolido. A maioria dos leigos não compreende o contexto histórico do rito, mas não hesitam em dizer que ele não corresponde as necessidades pastorais do homem moderno. "Motivos pastorais" é um dos argumentos mais utilizados para justificar a abolição do rito. Outro motivo invocado é o económico: argumenta-se que é mais barato adoptar os novos livros romanos do que os de Braga. Facilidade na deslocação das comunidades e uniformidade como sinal de unidade são argumentos que surgem várias vezes também. Um sacerdote recorre a precedentes históricos para a adopção do missal Paulino, referindo-se ao facto da arquidiocese ter sido a primeira na península ibérica a adoptar o rito romano (o que não é totalmente verdade)!
Qual foi o parecer da CCD sobre a proposta de revisão? O parecer final foi de que o rito bracarense deveria ser preservado na sua integralidade, conforme era antes das revisões: 

Exclui-se toda e qualquer mistura do rito bracarense com o rito romano, de modo que o rito bracarense conserve integralmente a forma nativa, segunda a veneranda tradição secular.
Todavia:
  • Na celebração da Missa sem povo, o sacerdote que usa o rito bracarense pode tomar leituras do leccionário promulgado por autoridade de Paulo VI;
  • Na celebração da Missa com povo, o Ex.mo Arcebispo dará normas oportunas em ordem a providenciar os meios necessários a activa e consciente participação dos fiéis;
  • As leituras e a oração universal ou dos fieis devem ser proferidas em vernáculo. As leituras devem tomar-se do supracitado leccionário.
A CDD também deu ao clero bracarense a opção de utilizar ou um ou outro dos livros litúrgicos (desde a edição dos anos 1920's até à altura o bracarense era obrigatório em toda a arquidiocese).

Conclusão:
Porque nunca terá sido aprovada a revisão do rito bracarense? Terá a CDD concluído que era um rito moribundo tendo em conta os dados fornecidos? Talvez jamais saberemos. A verdade é que o rito bracarense está virtualmente morto. Tirando uma celebração esporádica por algum sacerdote desconhecido, a sua celebração diária, tanto quanto sei, não é uma realidade. Ocasionalmente há registos de celebrações presididas pelo arcebispo em Braga, mas do que me tem constado é que se trata duma celebração híbrida, influenciada pela Novus Ordo, quiçá o mesmo rito que a CDD recusou. Estas celebrações, à luz do que consta do relatório e dos factos a que tenho acesso obrigam-me a perguntar: Qual a legitimidade deste rito? Cairá sob a cláusula respeitante as celebrações presididas pelo arcebispo?
Qual a finalidade deste post? Acredito que o destino do rito bracarense é relevante para as discussões actuais que decorrem no mundo litúrgico respeitantes à vetus ordo do missal romano (também conhecido com forma extraordinária do rito romano). Espero que esta breve exposição levará a um estudo mais profundo do rito bracarense e a sua (eventual) reabilitação.

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