Quase todos nós ao ouvirmos falar da primeira Missa celebrada em
território brasileiro imediatamente trazemos à nossa mente a imagem
imortalizada pela tela de Victor Meirelles de 1860 e atualmente exposta
no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. A pintura, de estilo
romântico, representa os indígenas e portugueses assistindo a uma Missa
celebrada pelo Frei Henrique de Coimbra, acolitado por um outro frade,
diante de uma grande cruz de madeira armada junto do altar da
celebração. Por ocasião dos 512 anos da celebração da primeira missa no
Brasil, comemorado hoje, dia 26 de abril de 2012, essa imagem está sendo
compartilhada nas redes sociais para relembrar o evento. Contudo, a
tela de Meirelles retrata na verdade, a segunda Missa no Brasil,
celebrada dia 1º de maio. Como assim?!
No dia 26 de abril de 1500, os portugueses celebraram a primeira missa
no Brasil, mas na ilha da Coroa Vermelha, uma ilhota que já não existe
mais. Era Domingo da Oitava de Páscoa, e a Missa foi celebrada de forma
cantada, sobre um altar montada debaixo de um dossel, assistida por
cerca de 1000 homens da esquadra de Pedro Álvarez Cabral. Na praia do
continente, cerca de 200 indígenas acompanhavam de longe a cerimônia.
"Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu.
E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com
ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e
dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós
outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz
entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e
sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.
Acabada
a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos
lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da
história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta
terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a
propósito, e fez muita devoção.
Enquanto assistimos à missa e ao
sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a
de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos,
sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a
pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e
começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em
almadias -- duas ou três que lá tinham -- as quais não são feitas como
as que eu vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam
quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da
terra, só até onde podiam tomar
pé.
Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta."(Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rey Dom Manuel I de Portugal, Porto Seguro, 1º de maio de 1500. Os grifos são meus)
O motivo desta celebração ter sido mais afastada foi provavelmente de
que o capitão não se sentia seguro de mandar celebrar a liturgia no
continente por ainda não ter contatos suficientes com os nativos da
terra.
Foi só na sexta-feira, 1º de maio, que o Frei Henrique de Coimbra
celebrou Missa solene diante da cruz de madeira plantada na terra da
praia de Porto Seguro, a qual assistiu toda a esquadra e uma grande
quantidade de indígenas que se juntaram para observarem a cerimônia.
"E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã,
saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio,
contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para
melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a
cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros
fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e
sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de
procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando
nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos.
Passamos o rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de
ficar, que será obra de dois tiros de besta do rio. Andando-se ali
nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais. Plantada a cruz, com as
armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado,
armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual
foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela,
perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim
como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em
pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as
mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a
assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de
joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos
levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que
nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a
comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses religiosos e
sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles, por o
Sol ser grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros
estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco
anos, se conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim
estávamos, juntava aqueles que ali tinham ficado, e ainda chamava
outros. E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para
o altar, e depois mostrou com o dedo para o céu, como se lhes dissesse
alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!
Acabada a missa, tirou o
padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao
altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo
é o dia, tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão
santo e virtuoso, que nos causou mais devoção.
Esses que estiveram
sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que
digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e
acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com
crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que
lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o padre
frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos -- um a um --
ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as
mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas, que seriam obra de
quarenta ou cinqüenta. E isto acabado -- era já bem uma hora depois do
meio dia -- viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo aquele
mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu, (e um
seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa
mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.
E segundo o que a mim e a
todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda
cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam
fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria
nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem
entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao
desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de
vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimentos de
nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais
hoje também comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram não veio
mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um
pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao
sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim,
Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior --
com respeito ao pudor. Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive
se se convertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua
salvação.
Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer." (Carta de Pero Vaz de Caminha)
Fica assim, desfeito o engano. A primeira missa no Brasil foi celebrada
em um Domingo, dia 26 de abril, na ilhota da Coroa Vermelha. O que
Victor Meirelles representou em seu quadro de 1860 é a primeira Missa
celebrada em terras continentais do Brasil, na sexta-feira, 1º de maio
de 1500. Nada disso, contudo, anula a memória deste dia, em que
comemoramos a primeira Missa celebrada em terras brasileiras, onde por
singular graça e sagrado privilégio, nossa Pátria nasceu sendo oferecida
a Deus junto com o Santo Sacrifício de Seu Filho e Senhor Nosso, Jesus
Cristo.
Brasil: Terra de Santa Cruz!
SAIBA MAIS:
KUHNEN, Alceu. As Origens da Igreja no Brasil: 1500 a 1552.Bauru, EDUSC, 2005.