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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Música litúrgica - o Gloria

O Gloria, fazendo parte do Ordinário, é (ou deve ser) muito bem conhecido pelos fiéis, pois figura em todas as Missas dominicais. Todas? Bem – não exatamente em todas, mas já chegaremos lá. A maioria das Missas dominicais utiliza, sim, o Gloria, que vou escrever sem acento neste texto por usar a palavra latina.

Maioria das Missas Dominicais, isto é, não todas; donde já concluímos que o Gloria é uma daquelas partes do Ordinário que se omitem em certas datas litúrgicas. Não se trata de regra e exceção; a Missa com o Gloria não é a regra, e a Missa sem Gloria também não é a regra. A regra é, de acordo com a data, usá-lo ou não.

Acredito ser interessante começarmos com a distinção entre as datas litúrgicas conforme seu uso ou omissão do Gloria. Vamos pensar na Forma Ordinária. Nestes dias o Gloria não aparece:

1-) Dias de semana (Segunda a Sábado) de qualquer tempo. A não ser que ocorra uma Festa ou Solenidade.

2-) Todos os dias (inclusive Domingo) do Advento e da Quaresma. A não ser que ocorra Solenidade.

Solenidade que costuma ocorrer durante a Quaresma é a Solenidade de São José, em 19 de Março; a Missa tem o Gloria. No Advento sempre ocorre a Solenidade da Imaculada Conceição, em 8 de Dezembro; também então a Missa tem o Gloria.

O Gloria aparece em:

1-) Todos os Domingos. A não ser na Quaresma e no Advento.

2-) Festas e Solenidades.

O texto do Gloria se origina, como se pode notar, do canto dos anjos na noite do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim diz a Escritura em Lc 2, 14:

Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens, objetos da benevolência (divina) [Bíblia Ave Maria]

Gloria in altissimis Deo et in terra pax in hominibus bonae voluntatis [Vulgata]

Gloria in altissimis Deo, et super terram pax in hominibus bonae voluntatis [Neo Vulgata]

Com estas palavras a abri-lo, este texto foi composto em grego; era um dos inúmeros psalmi idiotici que se escreveram nos séculos II e III. Esta designação pode nos causar a nós, falantes de português, um certo estranhamento, por idiotici nos fazer lembrar da palavra idiota, que tem para nós significado bastante negativo. Entretanto, mesmo o nosso idiota vem do grego idiôtés, referindo-se ao homem privado, particular (e não público). Os psalmi idiotici são “salmos privados”, de composição nova, diferentemente dos poemas do Saltério hebraico.

Antes mesmo que São Jerônimo empreendesse a tradução da Bíblia Sagrada para a língua latina, o Gloria foi traduzido para esse mesmo idioma, embora não tão antes. Isto explica a diferença entre o Gloria in excelsis com que começa o Gloria propriamente dito e o Gloria in altissimis que São Jerônimo preferiu para traduzir o versículo evangélico.

Quando o Gloria foi introduzido na Santa Missa em Rito Romano, era exclusivo da celebração litúrgica do Natal do Senhor. A extensão do uso se deu lentamente, passando a ser usado nos Domingos, em algumas festas, mas sempre só pelos bispos; posteriormente, foi concedido aos padres usar o Gloria, embora apenas no dia de sua ordenação e na Páscoa.

No século XII, finalmente, pode-se dizer que estava pronta a configuração que conhecemos na Forma Extraordinária, que omite o Gloria desde a Septuagésima até a Semana Santa; e a introdução do caráter mais penitencial do Advento, do qual o Gloria passou a ser omitido também.

Infelizmente, já na Idade Média o texto do Gloria se submetia, com certa freqüência, a adições não previstas pela Liturgia. É verdade que a natureza de tais adições se mostra muito diferente daquelas que vemos em nossos dias; porém, tratam-se, da mesma maneira, de elementos novos colocados sem autoridade e sem autorização na celebração Litúrgica, cujas normas devem ser dadas somente pela Igreja. Aqueles tempos talvez pudessem, aqui, gozar de alguma complacência devido à existência de Missais diversos. A partir de 1570, entretanto, esta desculpa não existe; nesse ano, o Santo Padre, o papa São Pio V promulgou o que chamamos de Missal Tridentino e deixou mais claro ainda como devia ser a celebração da Liturgia. As regras para inclusão e omissão do Gloria continuam válidas para a Forma Extraordinária do Rito Romano em nossos dias, e para incluí-las neste texto me vem em socorro a Catholic Encyclopaedia:

(...) [o Gloria] é omitido nos dias de semana (exceto no Tempo da Páscoa), Têmporas, Vigílias, durante o Advento e da Septuagésima até a Páscoa, quando a Missa é de tempore. A festa dos Santos Inocentes, mas não sua oitava, é mantida com vestimentas roxas e sem o Te Deum ou Gloria. Tampouco se diz o Gloria nas Missas de Requiem ou votivas, com três exceções: Missas Votivas da Santíssima Virgem aos Sábados, dos Anjos e aquelas ditas pro re gravi ou por causa pública da Igreja, a não ser que as vestimentas sejam roxas. (...)
A menção ao Te Deum se refere ao Ofício Divino, e não precisamos nos preocupar com ela agora.

A tradução portuguesa do Gloria que utilizamos na Missa traz a curiosidade de inverter dois blocos de texto, quando a comparamos com o Gloria em latim. Não encontrei até hoje nenhuma explicação para esta ocorrência. Agradeço a quem puder esclarecer este fato. O quadro abaixo mostra a inversão, ao mesmo tempo em que coloca para o estimado leitor, lado a lado, o Gloria em latim e o Gloria em português. Para vê-lo maior, clique no quadro.


De qualquer forma, isto se encontra muito distante de ser o maior problema que temos com o Gloria. Esta simples inversão se conserta com a publicação de uma nova versão oficial; o que parece difícil de consertar é o uso de outros textos no lugar do Gloria.

ATUALIZAÇÃO [12.8.2010] Leia os comentários feitos a este texto. Lá o nosso leitor Irmão Tomás de Aquino e o Rafael Brodbeck nos explicam essa questão.
São dois pensamentos básicos que dão origem a abusos no Gloria. O primeiro é que, por se tratar de um hino de louvor, qualquer “hino de louvor” pode ser colocado neste momento. Engano gravíssimo. O Gloria faz parte do Ordinário da Missa e não dá lugar a nenhum outro texto. A IGMR diz, textualmente: o Glória é um hino antiquíssimo e venerável, pelo qual a Igreja, congregada no Espírito Santo, glorifica e suplica a Deus Pai e ao Cordeiro. O texto deste hino não pode ser substituído por outro.

O texto não pode ser substituído por nenhum outro. Isto exclui textos parecidos, paráfrases, extensões, abreviações etc. Tampouco vejo como seria possível admitir versões métricas.

O segundo pensamento é o de que o Gloria é um “louvor trinitário”. Pois bem; ainda que consideremos o Gloria como louvor à Trindade, não é nisto que ele se concentra; e mesmo que fosse o caso, o fato de ser um louvor trinitário não autoriza ninguém a substitui-lo por outro texto que seja considerado “louvor trinitário” por quem quer que seja.

Daí provêm canções, freqüentemente utilizadas em nossos dias no lugar do Gloria, cujo texto dedica uma estrofe para cada Pessoa da Santíssima Trindade, com as quais se alterna um refrão que costuma conter a palavra “Glória” – e estes simples elementos ficam considerados suficientes para que a tal canção seja colocada neste momento da Liturgia. Ainda que a música não fosse péssima, seria um erro litúrgico muito grave.

É urgente abolir essas canções. Certamente há muita música que precisa ser extirpada da Liturgia, atualmente, mas o Gloria realmente clama aos céus. Não é possível que se jogue no lixo um texto de mais de quinze séculos para pôr, em seu lugar, uns versos fraquíssimos de péssimo gosto musicados com o que há de mais medíocre na música. O que há algum tempo temos visto no Gloria é comparável ao uso de vasos de plástico no altar, comparável à substituição dos paramentos por bermudas e camisetas.

Em alguns fóruns da internet ainda se faz a pergunta: é permitido bater palmas no Gloria? Esta pergunta encerra um pensamento bastante curioso: seria permitido bater palmas na Missa, mas não em todas as partes. Tal assunto já foi bastante debatido, e a resposta definitiva é não; não se batem palmas em nenhum momento da Missa. E é especialmente desagradável que, indo a uma Missa, deparemo-nos com música que poderia ser acompanhada de palmas (mesmo que efetivamente não seja).

*

Por ser um texto relativamente longo, no canto gregoriano o Gloria nunca é melismático, mantendo-se no silábico e se aventurando um pouco no neumático. Recordemo-nos: melismático, muitas notas para uma sílaba; neumático, algumas notas para uma sílaba; silábico, uma nota por sílaba.

O Gloria possivelmente mais simples é o Gloria chamado ambrosiano. O leitor pode ver na figura abaixo suas primeiras linhas, e poderá perceber que é bastante silábico. Somente na sílaba bi de tibi é que surge um melisma (de treze notas), o qual marquei em verde.


Assim ele continua, alternando muitas frases silábicas com ocasionais melismas. Seu Amen é melismático – dezenove notas na segunda sílaba!


Este Gloria ambrosiano é o quarto das melodias ad libitum, não fazendo parte dos dezoito ordinários do Kyriale. O Gloria colocado como primeira ilustração deste texto é o Gloria IV do Kyriale. Aquela imagem é de um livro mais antigo. Vejamos a mesma partitura (com a continuação, claro) impressa em 1961:


Este Gloria IV também é eminentemente silábico, com poucos melismas; mais numerosos, entretanto, que os do Gloria ambrosiano. Um aspecto do ambrosiano que o faz mais fácil é seu constante uso de notas repetidas, como se fosse um canto salmódico. Observe o leitor que o Gloria IV se move bem mais.

Na música polifônica sempre se deixou a primeira frase – Gloria in excelsis Deo – para o celebrante entoar, entrando o coro a partir de et in terra pax. Na verdade, isto acontece também no gregoriano, mas o efeito é mais forte na música polifônica, pois a primeira frase é cantada por um homem só e, de repente, se ouvem múltiplas vozes cantando a várias partes.

Aproveitando que no texto do Kyrie ouvimos o Kyrie da Missa Papae Marcelli, de Palestrina, vamos ouvir também seu Gloria. Se no começo o volume estiver baixo e o leitor não tiver ouvido bem o início, volte para perceber as primeiras palavras cantadas pelo solista e a entrada do coro todo em et in terra.

Veja o leitor, na partitura, que a música do coro começa com et in terra, e o Gloria in excelsis Deo ali escrito é meramente o título da composição. Na gravação abaixo, o solista canta o início do Gloria VIII.


A Missa Papae Marcelli, lembremo-nos, foi assim intitulada por Palestrina em homenagem ao papa Marcelo II, que em 1555 reinou por apenas 22 dias.

Palestrina (1525-1594), Gloria da Missa Papae Marcelli

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