Embora eu desconfie um tanto da associação de termos comumente políticos à descrição de situações da Igreja, parece-me que com grande freqüência tais palavras se ajustam bem a esse contexto. Uma delas é “populismo”; no meu entender, uma explicação fortemente possível para certas escolhas relacionadas à Liturgia, e, não raro, para as escolhas abusivas.
A música é um dos elementos litúrgicos que mais sofrem com esse populismo. Embora na prática a música tenha enorme importância na cultura humana, é vista por certos olhos com um pouco de desprezo. E aqui já nem me limito à Liturgia, mas à vida cultural toda. É comum que a Filosofia, a Literatura, a Teologia, as Ciências Naturais etc. causem logo de início reações de respeito e reverência. A Música atrai sorrisos e evocações pitorescas. Pode parecer bom, mas só parece. Não há muitos que percebam na Música algo mais do que instrumento de lazer. Enquanto isso, sem que a grande maioria perceba, a linguagem musical é utilizada conscientemente, o tempo todo, para incutir comportamentos, vender produtos, modelar ambientes.
Enfim, a Música tem essa fama de mulher bonita sem muito conteúdo, para usar uma comparação que fiz em outra oportunidade. E, sendo subestimada como é, não há como o nível da cultura musical se manter.
Os efeitos na música litúrgica são catastróficos; e catástrofes só são toleradas quando as pessoas não estão percebendo que uma catástrofe está acontecendo. E, neste caso, pelo contrário: há muitos que parecem bem acomodados com a situação atual e, mais do que isso, gostam dela. E se em tantos lugares a instrução para o músico é manter a música ruim, é porque há pessoas atraídas por essa música ruim. E isto não é especulação nem anedota: é evidência confirmada por relatos, inclusive na internet.
Se a boa música está sendo sacrificada para que mais gente venha à Missa, pior seria sacrificar a boa doutrina. Não podemos nos contentar, entretanto, com o mal menor.
O populismo busca, na política, agradar a população em geral com medidas de efeito positivo imediato, quase sempre sem grandes considerações sobre um futuro em que dificuldades surgirão por causa das tais medidas. Outra característica é, da parte do governo populista, procurar vincular-se diretamente ao “povo”, excluindo instituições como parlamentos, partidos etc. – nem sempre por meio de sua extinção, mas da campanha sistemática para desacreditá-los ao mesmo tempo em que se coloca como uma espécie de Messias.
Na Liturgia o populismo quer ignorar a autoridade do Missal e convencer-nos de que seria absurda a normatização das cerimônias pela distante Roma, onde supostamente só há senhores idosos que não sabem da “realidade” do “povo”. É difícil superar o populismo desse discurso.
O populismo na Liturgia é a única explicação possível para admissão de um grande número de composições musicais, entre as quais uma muito famosa é conhecida como o “Santo dos Anjos”. Aparentemente bastante difundida, tem sido utilizada no Sanctus, e me inspirou especial repugnância quando a ouvi, pela primeira vez, numa Missa de Corpus Christi. A repugnância provém de sua tenebrosa infidelidade ao texto que deveria ser usado neste momento e do seu uso de uma rítmica de dança popular de significação insuperavelmente alheia à Liturgia.
O Sanctus da Missa, em português, utiliza o seguinte texto:
Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do Universo.
O céu e a terra proclamam a vossa glória. Hosana nas alturas.
Bendito o que vem em nome do Senhor. Hosana nas alturas.
Não contente com estas palavras, talvez julgando-as insuficientes, o chamado “Santo dos Anjos” vai se arrastando:
Santo, santo, santo, dizem todos os anjosSanto, santo, santo, é o Senhor JesusSanto, santo, santo, é quem os redimePorque meu Deus é Santo e a terra cheia de sua glória estáPorque meu Deus é Santo e a terra cheia de sua glória estáCéus e terras passarão, mas Sua Palavra não passaráCéus e terras passarão, mas Sua Palavra não passaráNão, não, não passaráNão, não, não passaráHosana a Jesus Cristo, filho de MariaBendito o que vem em nome do SenhorSanto, santo, santo, é quem os redimePorque meu Deus é Santo e a terra cheia de Sua glória estáPorque meu Deus é Santo e a terra cheia de Sua glória estáCéus e terras passarão, mas Sua Palavra não passaráCéus e terras passarão, mas Sua Palavra não passaráNão, não, não passaráNão, não, não passará
Trata-se de um dos casos mais assustadores de desrespeito ao texto litúrgico, sem contar, é claro, as situações em que quaisquer palavras do texto estejam completamente ausentes. Musicalmente, a rítmica dançante e popular traz para dentro da igreja um elefante branco, um elemento completamente destoante, montando um conjunto surrealista que me espanta tenebrosamente por ser considerado tão normal.
A palavra “não” tem especial destaque na melodia com a qual esse texto é cantado. De modo geral, têm grande destaque as partes do texto que foram adicionadas ao texto correto. De que céus e terra passarão e a palavra de Deus não passará, ninguém duvida. É certo, entretanto, que igualmente ninguém mandou cantar isso na hora do Sanctus. E, mesmo que só o texto certo fosse cantado, a música não deve ser de dança folclórica. Esta composição quebra totalmente a atmosfera que a Liturgia deveria ter. Destoa do Prefácio que precede o Sanctus; destoa da Oração Eucarística. Destoa de qualquer função realizada dentro da igreja, ainda que não seja litúrgica.
No entanto, continua sendo usada porque o “povo”, sempre ele, invariavelmente canta bem forte quando essa música é usada. Se o canto forte do povo é relevante em matéria litúrgica, de nada adianta estudar a Liturgia. É suficiente avaliar quais elementos suscitam resposta mais forte, mais barulhenta ou mais emotiva do “povo”. Se estas reações acontecem, o elemento é aprovado. Se não acontecem, apenas se descarta. Um tal procedimento faria lembrar os seriados americanos, que podem não chegar nem à metade de sua primeira temporada se não derem audiência; são simplesmente cancelados.
Na Liturgia este tipo de pensamento é de uma bizarria que chega a superar a imaginação ficcional. O texto do Gloria, com mais de 1500 anos, é simplesmente substituído por outro mais curto, que possibilite música mais palatável. Não se está trocando apenas um grupo de palavras. Está-se trocando uma identidade, uma personalidade, uma história. O fiel é desconectado de todo o seu passado (que ele já mal conhecia), recebendo apenas a pregação sobre um vago Jesus, Senhor que operou maravilhas nesse passado todo que o fiel desconhece e ao longo de muitas gerações que o precederam.
Seria muito bom não precisar proibir o “Santo dos Anjos” e assemelhados. O ideal é que pare de ser usado na Liturgia e dê lugar à verdadeira música litúrgica de maneira natural. O ideal é que sua absoluta inadequação à Liturgia seja percebida espontaneamente pelos músicos, sacerdotes e fiéis. Que destes três grupos um ajude o outro a perceber a enorme perda que se tem cada vez que se permite executar uma tal composição no culto divino.
Que possamos banir o “Santo dos Anjos” da Liturgia e, em seguida, todos os seus assemelhados. Não permitamos que a Liturgia se contamine tanto por tamanho populismo. A conta do populismo é sempre muito cara e, se chamamos a Igreja de Mãe e Mestra, digamo-nos não apenas seus filhos, mas também seus discípulos, e autênticos discípulos.