Recebemos do professor Carlos Ramalhete um artigo de sua autoria para publicação no Salvem a Liturgia, o que nos honra e alegra. Como de hábito, seu texto é muito instrutivo e interessante. Temos certeza da grande importância destas palavras para todos os católicos.
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Miados inafáveis
Há algumas décadas eu digo que a minha impressão é que o
estado da liturgia de hoje na imensa maior parte das paróquias é semelhante ao
que teria acontecido se os adultos houvessem morrido e deixado às crianças
tomar conta de tudo. Quem tem filhos sabe como é quando eles resolvem preparar
um lanche para os pais, de surpresa: a mesa está posta, mas com tudo no lugar
errado, faltando coisas essenciais e com quantidades enormes de coisas
desnecessárias. Isto decorre de as crianças não dominarem os códigos
desenvolvidos ao longo de séculos, que determinam como a mesa deve ser posta. O
que eles fazem é reproduzir a impressão deles, desordenada e incompleta por
falta de compreensão, do que é uma mesa de lanche. Tudo, evidentemente, com
muito amor.
O mesmo ocorre na liturgia: coisas que chegam a ser
farsescas (como a colher de arroz que as crianças acham que deve ser boa para
servir mingau), misturadas com mensagens fora de lugar (como os cartazes
pendurados no presbitério), mas tudo com muito amor. E é neste sentido que eu
vejo um site como o Salvem a Liturgia:
é uma tentativa de educar estas amorosas crianças para que aprendam a botar a
mesa do lanche. Faz parte da nossa civilização, e, no caso da liturgia, da
nossa religião.
No caso, escrevo devido a um acontecimento engraçado – como
são engraçados os esforços amorosos das crianças – que testemunhei há alguns
dias. Um padre da Administração Apostólica, que só celebra a Missa na Forma
Extraordinária, fez 39 anos de ordenação. Um rapaz amigo dele, que costuma
tocar teclado e cantar, divinamente, canto gregoriano nas suas Missas,
compareceu à festa acompanhado de duas mocinhas da paróquia de origem dele.
Mais ainda: duas mocinhas do coral da paróquia dele. Na hora da festa, as
mocinhas resolveram cantar uma música em homenagem ao padre, acompanhadas no
teclado pelo rapaz. Abriram as boquinhas e soltaram um daqueles miados
melismáticos pseudo-gospel que estão na moda, em que não é incomum que se
glisse dois ou três tons, indo e voltando, com um tremolo soando a compungido
no final.
Ora, para elas, pobrezinhas, aquilo era música religiosa. A
cara do padre, que daria um bom jogador de pôquer, conseguiu esconder parte do
seu espanto: ele não conhece a horrenda mania que acomete muitas paróquias de,
especialmente no Salmo Responsorial, botar lá na frente uma moça para miar como
um gato sendo estrangulado, numa demonstração de talento vocal absoluta e
completamente alheia ao espírito da liturgia.
Notem que o problema não é o melisma (termo técnico para a
ocorrência de várias notas numa só sílaba – pense na canção americana “I’ll
Always love you”, em que o “I” se estende por vários compassos), mas o próprio
estilo destes salmos pseudo-gospel, que é contrário aos princípios da música
litúrgica católica. Alguns podem ser boa música, mas não música litúrgica. Na
igreja, infelizmente, em geral nem isso ocorre. O que se tem é um miado
oscilante e sincopado, com glissandi passando
por microtons completamente fora de qualquer escala ocidental.
O uso de melismas na música litúrgica – de que o canto
gregoriano é a forma mais perfeita – é uma longa tradição. Na verdade, é uma
tradição não apenas no nosso Rito mas, mais ainda, nos ritos orientais. Os
melismas do gregoriano, contudo, caracterizam-se pela perfeita pertença à escala
própria àquele canto. Esta pertença é tão perfeita que, quando um instrumento
temperado é usado para acompanhar os cantores, é comum que diminua a qualidade
e a afinação, pois não se trata de uma escala temperada, sim de uma escala
natural.
Em outras palavras: no canto gregoriano – a fortiori, no canto litúrgico católico
– o canto salta limpa e claramente de uma nota a outra da escala, sem glissar
e, principalmente, sem oscilar. Isto permite que o coro cante em uníssono
perfeito, preservando – mesmo através de longos melismas – a compreensão do
texto litúrgico. Afinal, o que se tem na liturgia é o texto litúrgico cantado,
não uma “letra de música” que pode perfeitamente não ser compreendida para que
a melodia seja apreciada.
Já no pseudo-gospel que assola nossas paróquias (e no seu
irmão mais velho e mais agradável aos ouvidos, o gospel verdadeiro, tipo de
música que não condiz com a liturgia mas pode e deve ser apreciada fora da
igreja, bem como seus descendentes – soul,
blues, etc.), o que seria o texto
litúrgico praticamente desaparece, em uma demonstração de virtuosismo que
consiste principalmente na capacidade de cantar fora da escala. Na música negra americana tradicional, bemolizam-se
(abaixa-se meio tom) algumas notas, para dar à melodia um jeitão
inesperadamente “triste”, forçando um tom menor onde normalmente se esperaria
um maior. Nas demonstrações de virtuosismo que se tornaram parte das formas
mais novas deste tipo de música, contudo, em que um solista massacra a melodia
ao ponto de torna-la mera referência, o que se faz é muito mais do que isso: a
voz do cantor oscila, glissa de uma nota a outra, criando uma outra melodia em
microtons que faz de cada melisma não uma sequência de notas distintas, mas um
longo glissando oscilante digno de um trombone de vara tocado por um
trombonista com mal de Parkinson. Dizem que é o que ocorre no programa de TV
“The Voice”, que nunca assisti. Mas é possível; é uma moda que, se não
estivesse presente, não teria invadido e depreciado a música sacra.
O resultado disto é que o texto do salmo é, na prática,
substituído por uma mera desculpa para uma demonstração de virtuosismo que nada
tem de litúrgica. Mais ainda: os habituados a este tipo de coisa frequentemente
propõem, como melodia para o responsório do salmo, algo no mesmo estilo, o que
o torna simplesmente incantável pela multidão.
Outro problema sério deste tipo de invasão é o ritmo
sincopado que têm, tradicionalmente, as melodias gospel em que se inspiram os
invasores. Ora, uma seita protestante nada mais tem que a oralidade: é a oração
(frequentemente cantada) entremeada com oratória, e nada mais. Um culto
protestante é basicamente um falatório, sem que nada de sobrenatural possa ali
acontecer.
Isto faz com que seja necessário, para que os frequentadores
continuem voltando semana após semana para cantar e ouvir alguém explicando o
que a teologia deles afirma não ser necessário explicar (a Escritura), que haja
algo mais. No caso das seitas compostas por negros no Sul americano, onde se
originou o gospel, este “algo mais” é a dança, além de fenômenos histéricos
pseudo-pneumatológicos. O ritmo sincopado das músicas gospel (em geral em 16/8)
foi desenvolvido justamente para levar as pessoas à movimentação física, ao
requebro que as torna mais propensas a aceitar sem racionalizar o que lhes é
dito do púlpito (é a mesma função da tradição protestante de responder ao que o
“pastor” diz com brados teoricamente espontâneos de “amém”, etc.).
Ora, na liturgia católica, tudo o que não se quer é que as pessoas tenham vontade de requebrar. A Santa
Missa é o Sacrifício do Calvário, tornado novamente presente de forma
incruenta. Estar na Missa é como estar aos pés da Cruz, na companhia excelsa de
Maria Santíssima e São João. Quem estaria requebrando, ali? Creio que nem mesmo
os judeus e romanos teriam tamanha desfaçatez!
Há quem se dedique a transpor para o vernáculo as melodias
gregorianas; é possível, hoje em dia, baixar o próprio de cada Missa em
melodias gregorianas e em português (ainda que o Concílio Vaticano II tenha
determinado que os fiéis devam aprender a cantar suas partes no canto
gregoriano original, em latim). É uma opção para quando, por alguma razão, não
se considera adequado usar a língua da Santa Madre Igreja.
Outra opção é
simplesmente ler os salmos, em voz pausada, para que, como deve ser, o texto
litúrgico – não o talento, ou ausência de talento, do cantor – sobressaia.
Em todo caso, urge eliminar, o quanto antes, os miados
pseudo-gospel que assolam nossas igrejas.
Na Quinta São Tomás, em Carmo de Minas, na festa de São
Rugero,
Carlos Ramalhete