É com muita alegria que trago a notícia da publicação para o Brasil de uma importante obra de estudo sobre a Concelebração Eucarística. Trata-se da tradução feita pelo querido amigo Pe. José Eduardo sobre a relativamente recente obra do Pe. Guillaume Derville, publicada pela Editora Canção Nova.
A seguir, o texto de uma conferência feita pelo Pe. José Eduardo para a apresentação do livro:
APRESENTAÇÃO
DO LIVRO
CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA,
DO SÍMBOLO À REALIDADE
O Concílio Vaticano II,
cujo cinquentenário comemoramos neste Ano da fé, foi anunciado pelo Beato João
XXIII em 25 de janeiro de 1959 sem que se tivesse definido um tema específico
sobre o qual se debruçaria. Sua fase preparatória, por isso, foi marcada por um
certo debate nas Conferências episcopais acerca de qual matéria deveria ser
especialmente focalizada pelos padres conciliares.
O card. Ratzinger, numa
conferência pronunciada no ano 2000, narrou um fato interessante:
Entre
os membros da Conferência Episcopal Alemã, portanto, prevalecia amplamente um
consenso sobre o fato de que a Igreja devesse ser o tema. O velho bispo
Buchberger, de Regensburg, (…) pediu a palavra - assim me contava o Arcebispo
de Colônia - e disse: caros irmãos, no Concílio deveis sobretudo falar de Deus.
Este é o tema mais importante. Os Bispos ficaram impressionados; não podiam
furtar-se à gravidade destas palavras (…). Algo de análogo se pode, aliás, dizer
a propósito do primeiro texto que o Vaticano II produziu - a Constituição sobre
a Sagrada Liturgia. O fato de que ela se situasse no início tinha em princípio
motivos pragmáticos. Mas retrospectivamente se deve dizer que na arquitetura do
Concílio isto tem um sentido preciso: no início está a adoração. E portanto
Deus. Este início corresponde à palavra da Regra beneditina: Operi Dei
nihil praeponatur[1].
De fato, a Constituição Sacrosanctum Concilium teve como
principal finalidade mostrar-nos que “a Liturgia é simultâneamente a meta para
a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua
força”[2],
pois, pela “Liturgia (...) ‘se opera o fruto da nossa Redenção’”[3], e
“esta obra da redenção dos homens e da glorificação perfeita de Deus,
prefigurada pelas suas grandes obras no povo da Antiga Aliança, realizou-a
Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal”[4].
“Portanto, a liturgia (...) faz com que a graça divina, que deriva do Mistério
pascal (...), santifique todos os passos da vida dos fiéis”[5].
O desejo do Concílio
Vaticano II, no que tange à Sagrada Liturgia, era, então, o de fazer com que
todos os fiéis nos introduzíssemos de modo mais profundo no mistério pascal e
dele hauríssemos, juntamente com nossa vida pessoal de piedade, toda a graça da
nossa santificação. Esta foi a razão última de todas as disposições conciliares
para a reforma litúrgica. Os aspectos práticos são decorrentes destes
princípios que, portanto, são essenciais para a correta hermenêutica daqueles.
Como afirmava o Card.
Ratzinger,
a
maior parte dos problemas ligados à aplicação concreta da reforma litúrgica tem
relação com o fato de que não se teve suficientemente presente que o ponto de
partida é a Páscoa. Prestou-se demasiada atenção às coisas puramente práticas,
com o risco de perder de vista aquilo que está no centro. Me parece essencial
retomar esta orientação como critério de renovação e aprofundar, assim, no que
o Concílio unicamente tinha querido esboçar[6].
A respeito da
concelebração, o texto da Sancrosanctum
Concilium afirma: “a concelebração, que manifesta bem a unidade do
sacerdócio, tem sido prática constante até ao dia de hoje, quer no Oriente quer
no Ocidente. Por tal motivo, aprouve ao Concílio estender a faculdade de
concelebrar”[7].
É aqui que se insere a
primeira utilidade do livro que hoje temos o prazer de apresentar. A disciplina
da concelebração não foi propriamente uma novidade inserida pelo Concílio, mas,
mais exatamente, uma prática já existente, agora oportunamente ampliada pela
autoridade da Igreja.
Nesta obra, Mons.
Guillaume Derville, com invejável erudição, nos apresenta uma documentação vasta
sobre o uso da concelebração na história da Igreja, no Ocidente e no Oriente,
dando-nos uma visão panorâmica de tudo aquilo que, na mais pura tradição
eclesial, sempre se entendeu a respeito. Conhecê-lo me parece vital para se compreender
com precisão o espírito com o qual o Concílio quis ampliar sua possibilidade.
Na sequencia, o livro
nos apresenta uma minuciosa exposição dos documentos pós-conciliares para
aplicação da reforma litúrgica, inclusive textos pouco conhecidos, e tantas
outras disposições canônicas, que nos fornecem as condições para percebermos
com clareza em quais limites o Magistério quis balizar a disciplina concernente
a esta prática.
Todas estas
determinações destinam-se, contudo, àquela finalidade principal alegada como motu da reforma conciliar: urge que
concorramos à sagrada liturgia como via de acesso ao mistério pascal. A isto,
também, devem servir as concelebrações.
Por isso, especial
relevo têm as riquíssimas considerações teológicas feitas pelo autor
relativamente ao tema, começando pelo profundo sentido da unidade do
presbitério, mostrando que suas raízes sacramentais são permanentes, radicadas
no sacramento da ordem, e, portanto, prévias à própria concelebração, antes,
são um seu pressuposto necessário. Em outras palavras, o fundamento da
fraternidade sacerdotal é a presença de Cristo no sacerdote e, portanto, a
concelebração não pode ser reduzida a um mero sinal desta fraternidade, pois,
como ele mesmo afirma, “todo o mistério da Eucaristia manifesta a unidade da
Igreja, haja ou não a concelebração”[8].
Ademais, o autor
apresenta uma interessantíssima reflexão acerca da peculiar identificação do
sacerdote com Cristo, colocando em evidência que, em determinadas situações, o
que está em jogo é a reta distinção entre o sacerdócio ministerial e o
sacerdócio comum de todos os fieis, a própria compreensão da natureza do ato
sacramental dos concelebrantes no ato celebrativo, e a autoconsciência do
concelebrante como um autêntico celebrante, sendo de vital importância, assim,
a clareza do sinal na ação litúrgica: como, por exemplo, a nitidez da pronúncia
da fórmula da consagração, a correta repetição dos gestos e palavras de Cristo,
a relevância do lugar em que o concelebrante se encontra relativamente à distância
do altar, a importância dos paramentos, entre tantos outros elementos. Estes
aspectos, sem dúvida, embora pareçam secundários, podem ser importantes quando
um sacerdote avalia a possibilidade de concelebrar ou não, ressalvando-se sempre
o direito que tem de abster-se.
A este respeito, vale a
pena recordar que, no sínodo da Eucaristia, os Padres sinodais reconheceram o
alto valor das concelebrações, especialmente aquelas presididas pelo Bispo com
seu presbitério, os diáconos e os fiéis. Contudo, solicitaram aos organismos
competentes que estudassem melhor a prática da concelebração quando o número
dos celebrantes for muito elevado[9].
Recolhendo esta proposta,
o Papa Bento XVI, na Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis, afirmou que
a assembleia sinodal
deteve-se a analisar a qualidade da participação nas grandes celebrações que
têm lugar em circunstâncias particulares e nas quais se encontram, para além
dum grande número de fiéis, também muitos sacerdotes concelebrantes. É fácil, por
um lado, reconhecer o valor destes momentos, especialmente quando preside o
bispo rodeado do seu presbitério e dos diáconos; mas, por outro, em tais
ocasiões podem verificar-se problemas quanto à expressão sensível da unidade do
presbitério, especialmente na Oração Eucarística, e quanto à distribuição da
sagrada comunhão. Deve-se evitar que estas grandes concelebrações criem
dispersão; providencie-se a isto mesmo por meio de adequados instrumentos de
coordenação, e organizando o lugar de culto de tal modo que permita aos
presbíteros e aos fiéis uma plena e real participação. Entretanto, é preciso
ter presente que se trata de concelebrações com índole excepcional e limitadas
a situações extraordinárias[10].
Parece evidente, pelo
próprio teor dos textos magisteriais, dos quais faz eco fiel o brilhante estudo
que apresentamos, que, no que diz respeito às concelebrações, precisamos nos
examinar: quando concelebro, sou consciente de que estou realmente celebrando, confeccionando a Eucaristia?, esforço-me
por envolver-me no ato celebrativo com a mesma compenetração de quando sou o
celebrante principal?, minha autoconsciência, enquanto concelebro, é de estar
exercendo, efetivamente, um ato sacramental, ou sinto-me como um fiel a mais,
paramentado, no meio da assembleia?, quando concelebro, faço oração, ou melhor,
entro na oração de Cristo na Igreja desde a minha condição de sacerdote in actu sacramental?
São perguntas que saltam
aos nossos olhos na leitura deste texto, com tantas outras considerações que
nos beliscam interiormente, pondo em relevo a importância fundamental de nossa
intimidade com Cristo na ação litúrgica, de nos confundirmos com ele enquanto
agimos in persona Christi, de O
tocarmos nas espécies sacramentais, de O contemplarmos desde uma perspectiva única,
privilegiada, instransferível.
Hoje, apresentamos ao
público de língua portuguesa esta obra de inestimável valor, com a consciência
de que ninguém sairá intacto de sua leitura. Certamente, este estudo mudará o
nosso modo de encarar a concelebração eucarística e, sobretudo, nos ajudará a
aproveitarmos melhor nossas próprias celebrações, pelo rico conteúdo de
doutrina e espiritualidade com o qual estão carregadas estas páginas.
Como afirmava o Papa
Bento XVI, “celebratio é oração e
diálogo com Deus: Deus conosco e nós com
Deus. Portanto, a primeira exigência para uma boa celebração é que o sacerdote
entre realmente neste diálogo”[11].
[1] Ratzinger,
Joseph, A Eclesiologia do Concílio
Vaticano II, Roma 2000.
[2] Concílio
Vaticano II, Constituição Sacrosanctum
Concilium, n. 10.
[3] Ibidem,
n. 2.
[4] Ibidem,
n. 5.
[5] Ibidem,
n. 61.
[6] Ratzinger,
Joseph, I 40 anni della
Costituzione sulla Sacra Liturgia in Opera
Omnia, pp. 775-776.
[7] Concílio
Vaticano II, Constituição Sacrosanctum
Concilium, n. 57 § 1.
[8] Derville,
Guillaume, Celebração Eucarística,
do símbolo à realidade, Canção Nova, São Paulo 2013, Cap. II.
[9] Cf. Sínodo
dos Bispos sobre a Eucaristia, Propositiones,
n. 37.
[10] Bento
XVI, S.S, Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis, n. 61.
[11] Bento
XVI, S.S, Discurso ao clero de
Albano.