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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Palavra e Silêncio



"O silêncio, portanto, não é um fim em si mesmo; não gera mais silêncio, mas produz fruto, que é a palavra, favorecendo o colóquio da alma com Deus. Daí que se pode dizer que o silêncio realça a Palavra."


Passamos recentemente por mais um setembro, mês dedicado às Sagradas Escrituras pela Igreja no Brasil. Neste contexto, por mais estranho que possa parecer, é muito apropriado falarmos sobre o silêncio.

No mundo hodierno vivemos constantemente bombardeados por estímulos artificiais, principalmente visuais e sonoros. São outdoors amontoados, construções arquitetônicas desconexas do seu redor, televisores constantemente ligados em nossas casas, veículos automotivos, músicas com ritmos frenéticos, etc. Todos estes estímulos causam em nosso íntimo uma sensação de desordem, de falta de harmonia, que nos dificulta - e muito! - o recolhimento interior e a reflexão sobre aquelas questões essenciais ao homem e a nossa vida terrena.

A situação chegou em tal ponto que a maioria dos homens têm um certo medo do silêncio. Basta pensarmos no televisor ligado na sala para gerar ruído, sem que ninguém o esteja assistindo. Ou nos fones de ouvido que muitas pessoas usam ao andar nas ruas, num momento que seria propício para a reflexão interior, para, como se diz, colocar o pensamento em dia, por mais que o ambiente exterior continue rodeado destes estímulos. Não que o uso de fone de ouvido na rua seja de todo ruim; pelo contrário, ouvindo uma boa música (calma, independentemente do gênero) conseguimos eliminar muito destes ruídos externos que causam harmonia e desordem. Mas os homens, em geral, parecem acreditar que silenciar é perder tempo, e então procuram subterfúgios para evitá-lo a todo custo.
"No silêncio, escutamo-nos e conhecemo-nos melhor a nós mesmos, nasce e aprofunda-se o pensamento, compreendemos com maior clareza o que queremos dizer ou aquilo que ouvimos do outro, discernimos como exprimir-nos. Calando, permite-se à outra pessoa que fale e se exprima a si mesma, e permite-nos a nós não ficarmos presos, por falta da adequada confrontação, às nossas palavras e ideias." (Papa Bento XVI. 46º Dia Mundial das Comunicações Sociais)
São Bento, ao falar do silêncio, faz uma distinção entre quies e silentium: o primeiro é a ausência de ruídos, a quietude, o silêncio físico; o último é um estado da mente, duma consciência atenta, voltada para os outros e para Deus. O homem de hoje, movido principalmente pela falta de quies, perdeu a capacidade do silentium, que tão desconhecido lhe é a ponto de causar-lhe medo.



Tenho por certo que nesta pouca quietação do homem moderno encontra-se uma das principais causas de sua enorme dificuldade em buscar o transcendente. Recordemo-nos da experiência do Profeta Elias, a quem Deus manifestou-Se não na força ou no ruído, mas na brisa suave:
11. O Senhor disse-lhe: Sai e conserva-te em cima do monte na presença do Senhor: ele vai passar. Nesse momento passou diante do Senhor um vento impetuoso e violento, que fendia as montanhas e quebrava os rochedos; mas o Senhor não estava naquele vento. Depois do vento, a terra tremeu; mas o Senhor não estava no tremor de terra.
12. Passado o tremor de terra, acendeu-se um fogo; mas o Senhor não estava no fogo. Depois do fogo ouviu-se o murmúrio de uma brisa ligeira.
13a. Tendo Elias ouvido isso, cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da caverna. (I Reis XIX - Bíblia Ave Maria)
Se a oração é o colóquio da alma com Deus, e toda conversação exige tanto momentos de fala como de escuta (silêncio), uma alma que não silencia torna-se incapaz de ouvir a Deus. 
“Para que as coisas possam guardar-se no interior e ser ponderadas no coração, é condição indispensável guardar silêncio. O silêncio é o clima que torna possível o pensamento profundo. Quem fala demasiado dissipa o coração e leva-o a perder tudo o que há de valioso no seu interior; assemelha-se então a um frasco de essência que, por estar destapado, perde o perfume, ficando apenas com água e um ligeiro aroma a recordar vagamente o precioso conteúdo de outrora” (SUÁREZ, Federico. A Virgem Nossa Senhora, Ed. Quadrante, pág. 185)
Infelizmente, no momento da história em que a humanidade menos silencia, nossas celebrações litúrgicas habitualmente não propiciam momentos de silêncio, ou não lhes dão a devida importância. Com isso, desacostumamo-nos com o silêncio na Liturgia, tal como estamos desacostumados com o silêncio no dia-a-dia. Sentimo-nos incomodados com os cinco segundos a mais que o grupo de música demorou para entoar o Kyrie, ou com o leitor que demora em começar a leitura do Lecionário.

Não temos uma alma contemplativa, que sabe silenciar (silentium). E aí temos um problema: sem o silêncio, a Liturgia transforma-se numa sequência ininterrupta de palavras, gestos e rituais em que apenas o homem fala, com pouco espaço para Deus. Este silêncio pode ser entendido como a pausa numa música, que possui uma função essencialmente ativa. Um instrumento em pausa coloca o seu instrumentista num estado de contemplação, por conta da sinfonia ocasionada pelos demais instrumentos, e simultaneamente de atenção, enquanto aguarda o momento de juntar-se aos demais de forma harmônica e bela. Sem as pausas, uma música transformar-se-ia num punhado de notas sobrepostas e difíceis de serem ouvidas e, portanto, contempladas.

De fato, a própria Liturgia cristã tem muito a ver com este sentido de pausa, de descanso. Deus, terminada a obra que havia feito, descansou ao sétimo dia da criação, consagrando-o (Gn II, 2ss). Também os cristãos passaram a consagrar o domingo, o Dies Domini (Dia do Senhor), o dia da nova criação, através principalmente da Liturgia, mas também do descanso do trabalho.

É preciso ter em conta que silenciar não é passar de uma postura ativa para outra, passiva. Não é passar do fazer para o nada fazer. Quem silencia troca uma ação (falar, fazer algum gesto ou rezar em voz alta) por outra ação (ouvir o que outro ou o próprio Deus fala, rezar interiormente unindo-se ao celebrante).

Uma das condições pessoais exigidas para uma frutuosa participação litúrgica é 
"o espírito de constante conversão que deve caracterizar a vida de todos os fiéis: não podemos esperar uma participação activa na liturgia eucarística, se nos abeiramos dela superficialmente e sem antes nos interrogarmos sobre a própria vida. Favorecem tal disposição interior, por exemplo, o recolhimento e o silêncio durante alguns momentos pelo menos antes do início da liturgia, o jejum e — quando for preciso — a confissão sacramental; um coração reconciliado com Deus predispõe para a verdadeira participação." (Papa Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 55)
O silêncio, portanto, não é um fim em si mesmo; não gera mais silêncio, mas produz fruto, que é a palavra, favorecendo o colóquio da alma com Deus. Daí que se pode dizer que o silêncio realça a Palavra.
Não há que surpreender-se se, nas diversas tradições religiosas, a solidão e o silêncio constituem espaços privilegiados para ajudar as pessoas a encontrar-se a si mesmas e àquela Verdade que dá sentido a todas as coisas. O Deus da revelação bíblica fala também sem palavras: «Como mostra a cruz de Cristo, Deus fala também por meio do seu silêncio. O silêncio de Deus, a experiência da distância do Omnipotente e Pai é etapa decisiva no caminho terreno do Filho de Deus, Palavra Encarnada. (...) O silêncio de Deus prolonga as suas palavras anteriores. Nestes momentos obscuros, Ele fala no mistério do seu silêncio» (Exort. ap. pós-sinodal Verbum Domini, n. 21). No silêncio da Cruz, fala a eloquência do amor de Deus vivido até ao dom supremo. Depois da morte de Cristo, a terra permanece em silêncio e, no Sábado Santo – quando «o Rei dorme (…), e Deus adormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há séculos» (cfr Ofício de Leitura, de Sábado Santo) –, ressoa a voz de Deus cheia de amor pela humanidade.

Se Deus fala ao homem mesmo no silêncio, também o homem descobre no silêncio a possibilidade de falar com Deus e de Deus. «Temos necessidade daquele silêncio que se torna contemplação, que nos faz entrar no silêncio de Deus e assim chegar ao ponto onde nasce a Palavra, a Palavra redentora» (Homilia durante a Concelebração Eucarística com os Membros da Comissão Teológica Internacional, 6 de Outubro de 2006). Quando falamos da grandeza de Deus, a nossa linguagem revela-se sempre inadequada e, deste modo, abre-se o espaço da contemplação silenciosa. (Papa Bento XVI. 46º Dia Mundial das Comunicações Sociais)



Por esta razão a Liturgia Romana sempre dedicou muito espaço para o silêncio. Quando foi normatizada por São Pio V, a Liturgia Romana já possuía muitos momentos de silêncio, e que ainda podem ser observados na Forma Extraordinária. Hoje, mesmo que todos os momentos de silêncio prescritos na Forma Ordinária sejam observados - o que raramente ocorre - ainda são em menor quantidade. Isto, aliado ao crescente interesse dos jovens pelo Usus Antiquior e à constante necessidade dos últimos Papas em reforçar a redescoberta do silêncio na Liturgia, leva a um saudável questionamento, tendo em vista uma eventual Reforma da Reforma, se a diminuição brusca do silêncio foi pastoralmente apropriada ou não. (Por outro lado, é digno de menção que a catequese litúrgica dos fiéis daqueles tempos muitas vezes não permitia que o rito mais silencioso fosse acompanhado de forma mais frutífera, algo que hoje parece superado entre os fiéis que freqüentam a Forma Extraordinária.)

O Silêncio na Forma Ordinária

Por não ser tão observado nas celebrações litúrgicas da Forma Ordinária, falemos mais do silêncio aí. O silêncio foi tido em conta pelos Padres Conciliares, a ponto de tocarem - embora sucintamente - de forma explícita no assunto. Ao contrário daquele que é o senso comum entre certos liturgistas modernos, o silêncio entrou justamente num trecho em que fala da participação ativa do povo, o que reforça o que foi dito anteriormente.

A Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, publicada em 1963, em seu Capítulo I, intitulado "Princípios Gerais em Ordem à Reforma e Incremento da Liturgia", na seção "III - Reforma da Sagrada Liturgia", subseção "A. Normas gerais", diz o seguinte:
"A participação do povo
30. Para fomentar a participação ativa, promovam-se as aclamações dos fiéis, as respostas, a salmodia, as antífonas, os cânticos, bem como as ações, gestos e atitudes corporais. Não deve deixar de observar-se, a seu tempo, um silêncio sagrado."
No 40º aniversário da Sacrosanctum Concilium, São João Paulo II, observando como o silêncio havia sido deixado de lado na liturgia, escreveu com maior ênfase sobre esta questão:
"Um aspecto que é preciso cultivar com maior compromisso, no interior das nossas comunidades, é a experiência do silêncio. Temos necessidade dele "para acolher nos nossos corações a plena ressonância da voz do Espírito Santo, e para unir estreitamente a oração pessoal à Palavra de Deus e à voz pública da Igreja"(32). Numa sociedade que vive de maneira cada vez mais frenética, muitas vezes atordoada pelos ruídos e perdida no efémero, é vital redescobrir o valor do silêncio. Não é por acaso que mesmo para além do culto cristão, se difundem práticas de meditação que dão importância ao recolhimento. Por que não começar, com audácia pedagógica, uma educação ao silêncio no contexto de coordenadas próprias da experiência cristã? Que esteja diante dos nossos olhos o exemplo de Jesus, que "tendo saído de casa, retirou-se num lugar deserto para ali rezar" (Mc 1, 35). Entre os seus diversos momentos e sinais, a Liturgia não pode minimizar o silêncio." (João Paulo II. Spiritus et Sponsa, n. 13)
Os livros litúrgicos modernos tratam do silêncio em alguns trechos, apresentados abaixo:

IGMR - Instrução Geral do Missal Romano, 3ª edição (2008)
O silêncio

XII. SILÊNCIO SAGRADO
201. Geralmente, em todas as celebrações litúrgicas se há de procurar «guardar, nos momentos próprios, um silêncio sagrado». Consequentemente, na celebração da Liturgia das Horas, facultar-se-á também a possibilidade de uns momentos de silêncio.
202. E assim, conforme as conveniências e a prudência aconselharem, seguindo o costume dos nossos maiores, poder-se-á introduzir uma pausa de silêncio após cada salmo, depois de repetida a antífona, mormente quando, a seguir ao salmo, se disser uma coleta salmódica (cf. n. 112); ou ainda após as leituras, breves ou longas, antes ou depois do responsório. Este momento de silêncio visa obter a plena ressonância da voz do Espírito Santo nos corações e unir mais estreitamente a oração pessoal à palavra de Deus e à oração oficial da Igreja.
Cuidar-se-á, porém, que o silêncio não venha alterar a estrutura do Ofício ou causar aos que nele participam mal-estar ou enfado.
203. Na recitação individual, é deixada mais ampla liberdade quanto a estas pausas, com o fim de meditar alguma fórmula susceptível de estimular afetos espirituais, sem que por isso o Ofício perca o seu caráter de oração pública.
45. Oportunamente, como parte da celebração deve-se observar o silêncio sagrado*. A sua natureza depende do momento em que ocorre em cada celebração. Assim, no ato penitencial e após o convite à oração, cada fiel se recolhe; após uma leitura ou a homilia, meditam brevemente o que ouviram; após a comunhão, enfim, louvam e rezam a Deus no íntimo do coração.
Convém que já antes da própria celebração se conserve o silêncio na igreja, na sacristia, na secretaria e mesmo nos lugares mais próximos, para que todos se disponham devota e devidamente para realizarem os sagrados mistérios.
* Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a S. Liturgia, Sacrossanctum Concilium, n. 30; S. Congre. dos Ritos, Instr. Musicam sacram, de5 de março de 1967, n. 17: A.A.S. 59 (1967) p. 305 

Na edição anterior da IGMR, que acompanha a 2ª edição do Missal Romano, este trecho equivale ao n. 23. O último parágrafo, contudo, a respeito do silêncio extra-litúrgico na igreja, é uma novidade da atual edição da IGMR.

Ordo Lectionum Missae (1981), tradução minha a partir do espanhol
28. A Liturgia da Palavra deve celebrar-se de tal maneira que favoreça a meditação; por isso, há de se evitar todo tipo de pressa, que impede o recolhimento. O diálogo entre Deus e os homens, que se realiza com a ajuda do Espírito Santo, requer breves momentos de silêncio, adequados à assembléia presente, para que neles a palavra de Deus seja acolhida interiormente e se prepare uma resposta por meio da oração. 
Estes momentos de silêncio podem ser guardados, por exemplo, antes de começar a Liturgia da Palavra, depois da primeira e da segunda leituras, e ao terminar a homilia.

Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas
XII. SILÊNCIO SAGRADO

201. Nas ações litúrgicas deve-se procurar em geral que se guarde também, há seu tempo, um silêncio sagrado; por isso, haja ocasião de silêncio também na celebração da Liturgia das Horas.

202. Por conseguinte, se parecer oportuno e prudente, para facilitar a plena ressonância da voz do Espírito Santo nos corações e unir mais estreitamente a oração pessoal com a Palavra de Deus e com a voz pública da Igreja, pode-se intercalar uma pausa de silêncio, após cada salmo, depois de repetida sua antífona, de acordo com antiga tradição, sobretudo se depois do silêncio se acrescentar a coleta do salmo; ou também após as leituras tanto breves como longas, antes ou depois do responsório.

203. Na recitação a sós, haverá maior liberdade para demorar na meditação de alguma fórmula, que incentive a elevação espiritual, sem que com isso o Ofício perca sua natureza pública.


E você, caro leitor? Conte-nos como o silêncio é ou não vivido por ti ou em tua comunidade. Consegues aproveitar o silêncio em tuas celebrações litúrgicas? Ou ele está em falta?

Referências


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