Recentemente foi lançado pela Editora Ecclesiae o primeiro volume de "Ser Cristão na Era Neopagã", trazendo material do então Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, nunca antes publicado no Brasil. Trata-se de discursos, homilias, debates e entrevistas concedidas pelo cardeal à revista italiana 30 giorni nella Chiesa e nel mondo (30 dias na Igreja e no mundo).
Organizado por meu amigo Rudy Albino de Assunção, ratzingeriano de carteirinha*, que também escreveu a apresentação do livro e a maioria das notas que introduzem cada artigo, este primeiro volume reúne diversos discursos e homilias de Ratzinger. O terceiro volume, composto por entrevistas, será de especial interesse dos nossos leitores, trazendo inúmeras menções à Reforma Litúrgica que seguiu ao Concílio Vaticano II.
Rudy, que acompanha este nosso apostolado em defesa da sagrada Liturgia, teve a bondade de enviar-nos - com a devida permissão da Editora Ecclesiae, a quem desde já agradecemos - um trecho em que Ratzinger fala do que se convencionou chamar de as duas formas do Rito Romano.
É interessante notar como Ratzinger já havia refletido ali sobre muitos dos pontos relacionados à Forma Extraordinária os quais tocaria durante seu pontificado, a saber: o reconhecimento do zelo apostólico das comunidades ligadas ao rito antigo; as dificuldades que muitas dessas comunidades enfrentaram (e continuam enfrentando!), fruto do preconceito e de um entendimento errôneo e ideológico de unidade; a falta de diferenciação entre o Concílio e a Reforma Litúrgica que o seguiu; e, por fim, a aplicação excessiva de criatividade em boa parte das missas segundo o rito moderno.
É interessante notar como Ratzinger já havia refletido ali sobre muitos dos pontos relacionados à Forma Extraordinária os quais tocaria durante seu pontificado, a saber: o reconhecimento do zelo apostólico das comunidades ligadas ao rito antigo; as dificuldades que muitas dessas comunidades enfrentaram (e continuam enfrentando!), fruto do preconceito e de um entendimento errôneo e ideológico de unidade; a falta de diferenciação entre o Concílio e a Reforma Litúrgica que o seguiu; e, por fim, a aplicação excessiva de criatividade em boa parte das missas segundo o rito moderno.
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LITURGIAS
DIFERENTES.
UMA RIQUEZA PARA A
ÚNICA IGREJA**
(Novembro de 1998)
No dia 02 de julho de
1998 a Pontifícia Comissão Ecclesia Dei completava 10 anos de sua
criação por parte do papa João Paulo II. Ela for criada para
facilitar a comunhão com todos aqueles que estavam ligados de alguma
maneira com Monsenhor Marcel de Lefebvre e também de possibilitar
que os bispos fossem mais abertos a dar o indulto para a celebração
da missa segundo o Missal de São Pio V. Na época se deram muitas
comemorações, inclusive uma grande peregrinação a Roma de
milhares de sacerdotes e fiéis tradicionalistas. Mas aliada à
peregrinação, foi promovida uma mesa redonda no hotel Erfige, com a
presença de Gérard Calvet, Camille Perl, Michael Davies, Robert
Spaemann e do Cardeal Ratzinger, que fez a conferência de abertura.
O que se segue é o texto da conferência de Ratzinger .
***
Que balanço podemos
fazer hoje, há dez anos da publicação do motu proprio Ecclesia
Dei? Creio que antes de tudo seja uma ocasião para expressar o nosso
agradecimento. As várias comunidades que surgiram graças a este
documento pontifício presentearam a Igreja com um grande número de
vocações sacerdotais e religiosas que com zelo e alegria e em
comunhão profunda com o Papa trabalham pelo Evangelho nesta época
histórica. Graças a elas muitos fiéis reforçaram ou conheceram
pela primeira vez a alegria de poder participar da liturgia e do amor
para com a Igreja. Em numerosas dioceses espalhadas pelo mundo elas
servem à Igreja colaborando ativamente com os bispos e instaurando
um relacionamento positivo e fraterno com os fiéis que se sentem à
vontade na forma renovada da liturgia. Tudo isso hoje merece todo o
nosso agradecimento.
Todavia seria
irrealista calar sobre os muitos lugares onde não faltam
dificuldades, então como agora, porque alguns bispos, sacerdotes e
fiéis consideram o apego à antiga liturgia (a dos textos litúrgicos
de 1962) como um elemento de divisão que perturba a paz da
comunidade eclesial e deixa supor uma certa reserva na aceitação do
Concílio e, mais em geral, na obediência devida aos pastores
legítimos da Igreja. Portanto, as perguntas que devemos nos colocar
são as seguintes: como se podem superar estas dificuldades? Como
podemos criar o clima de confiança necessário para fazer com que os
grupos e as comunidades ligadas à antiga liturgia se insiram
pacificamente e proficuamente na vida da Igreja? Porém, estas
questões subentendem uma outra; qual é a razão profunda desta
desconfiança ou, até mesmo, da recusa do prosseguimento da antiga
liturgia? Sem dúvida há razões pré-teológicas ligadas ao
temperamento de cada indivíduo, ao contraste entre os diversos
caráteres, ou a outras circunstâncias externas. Mas certamente
existem outras causas, mais profundas e menos fortuitas.
Há duas razões que
se apresentam com maior frequência: a não obediência ao Concílio
que reformou os textos litúrgicos e a ruptura da unidade derivante
da existência de formas de liturgia diferentes. É relativamente
simples contradizer ambos os raciocínios. Não foi propriamente o
Concílio quem reformou os textos litúrgicos, ele apenas ordenou a
sua revisão e, para tal fim, ficou algumas linhas fundamentais. O
Concílio deu principalmente uma definição de liturgia que fixa a
medida interna de cada uma das reformas e, contemporaneamente,
estabelece o critério válido para cada celebração litúrgica
legítima. A obediência ao Concílio seria violada no caso em que
não fossem respeitados tais critérios fundamentais internos e
fossem colocadas à parte as normae generales, formuladas nos números
34-36 da Constituição sobre a Sagrada Liturgia (Sacrosanctum
Concilium). É necessário julgar as celebrações litúrgicas
segundo estes critérios, sejam elas baseadas em velhos ou em novos
textos. Com efeito, o Concílio, como já foi acenado, não
prescreveu ou aboliu textos, mas deu normas de base que todos os
textos devem respeitar. Neste contexto, é útil recordar o que foi
declarado pelo Cardeal Newman: a Igreja no decorrer da sua história,
nunca aboliu ou proibiu formas ortodoxas de liturgia, por que isso
seria alheio ao próprio espírito da Igreja. Uma liturgia ortodoxa,
ou seja que é expressão da verdadeira fé, de fato, jamais é uma
simples reunião de cerimônias diferentes feita em bases a critérios
pragmáticos, das quais pode-se dispor de maneira arbitrária, hoje
de um modo, amanhã de outro. As formas ortodoxas de um rito são
realidades vivas, nascidas do diálogo de amor entre a Igreja e o seu
Senhor. São expressões da vida da Igreja, nas quais se condensam a
fé, a oração e a própria vida das gerações e nas quais
encarnaram-se numa forma concreta e num momento a ação de Deus e a
reposta do homem. Estes ritos podem se extinguir se historicamente
desaparece o sujeito que foi o seu portador ou se este sujeito está
inserido com a sua herança num outro contexto de vida. Em situações
históricas diferentes, a autoridade da Igreja pode definir e limitar
o uso dos ritos, mas jamais os proíbe tout-court. Assim, o Concílio
ordenou uma reforma dos textos litúrgicos e, consequentemente, das
manifestações rituais mas não abandonou os velhos livros. O
critério expresso pelo Concilio é, ao mesmo tempo, mais amplo e
mais exigente: ele convida todos a um exame de consciência.
Mais tarde voltaremos
a falar sobre este ponto. Por enquanto é necessário examinar um
outro assunto, o da – pressuposta – ruptura da unidade. Sobre
este propósito, é preciso distinguir na questão o aspecto
teológico do prático. No que se refere a componente teorética e
fundamental, devemos constatar que sempre existiram mais formas no
rito latino que foram progressivamente caindo em desuso devido à
unificação dos espaços de vida na Europa. Até a época do
Concílio, ao lado do rito romano, conviviam o ambrosiano, o moçárabe
de Toledo, o rito dos Dominicanos, e talvez muitos outros que eu não
conheço. Jamais alguém se escandalizou pelo fato de que os
Dominicanos, muitas vezes presentes em nossas paróquias, não
celebrassem a missa como os párocos, mas seguissem um seu próprio
rito. Todos nós sabíamos que o rito dele era católico assim como o
romano e éramos orgulhosos da riqueza de tantas tradições
diferentes. Além disso, não se pode esquecer que muitas vezes
abusa-se da liberdade de espaço que o novo Ordo Missae deixa à
criatividade e que a diferença entre os vários modos em que a
liturgia é colocada em prática e celebrada nos diferentes lugares
em base aos novos textos, muitas vezes é maior do que entre a antiga
e a nova liturgia. Um cristão destituído de uma cultura litúrgica
particular pouco distingue de uma missa cantada em latim segundo o
velho Missal de uma cantada em latim segundo o novo, enquanto que
pode ser enorme a diferença entre uma liturgia celebrada respeitando
fielmente os ditames do Missal de Paulo VI e as várias formas de
celebrações litúrgicas em língua viva amplamente difusas, que
deixam grande espaço à criatividade e à imaginação. [...]
* * *
Para mais informações, visite o site da editora.
* Não deixem de visitar o site Ratzinger Brasil.
** RATZINGER, Joseph. Ser cristão na era neopagã. Campinas, Ecclesiae, 2014, pp. 183-186.
* Não deixem de visitar o site Ratzinger Brasil.
** RATZINGER, Joseph. Ser cristão na era neopagã. Campinas, Ecclesiae, 2014, pp. 183-186.