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quarta-feira, 8 de abril de 2015

O Ofício romano do séc. VI aos nossos dias. Continuidade ou ruptura? Um ensaio de avaliação crítica

Recebi do Pe. Jean-Pierre Herman e sacerdote da diocese de Namur (Bélgica).  Ele nasceu em 1959.  Exerceu até hoje diversos ministérios em Europa, nos Estados Unidos e no Brasil.  É autor de diversos artigos em língua francesa sobre a história da liturgia.

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O Ofício romano do séc. VI aos nossos dias

Continuidade ou ruptura?

Um ensaio de avaliação crítica

Pe Jean-Pierre Herman


Ofício Romano. Um breve percurso histórico

Em 1971 apareceu a primeira edição da Liturgia Horarum juxta ritum romanum[1], que substituiu o venerável Breviarium romanum. Um dos objetivos dos reformadores do Vaticano II era restituir ao Ofício divino seu estatuto de oração do povo de Deus. Hoje as edições em vernáculo do novo Ofício[2] são amplamente difundidas e utilizadas para a oração comunitária e individual dos cristãos, clérigos ou laicos. Pareceu-nos, contudo, conveniente arriscar uma avaliação após quarenta anos de prática. Apresentaremos aqui, portanto, duas questões cruciais: por um lado «O Ofício divino atual é realmente o digno herdeiro do Breviário romano, ou ele marca uma ruptura com uma tradição secular?» e de outro: «Os reformadores, preocupados em restituir ao povo cristão a oração das horas, alcançaram seu objetivo?» A breve reconstrução histórica a seguir ajudar-nos-á a responder.



O Ofício divino, «série de ofícios não-sacramentais celebrados ou recitados em intervalos regulares durante o dia (e à noite) visando à santificação do tempo»[3], sem dúvida só apareceu na Igreja por volta do século IV, após o edito de Constantino. Com efeito, encontramos os primeiros traços nas narrativas de viagens de Egérie[4], nas quais o autor descreve, dentre outras coisas, os diferentes momentos de oração nos locais santos de Jerusalém.

Em 1949, Anton Baumstark publicou um estudo que se tornou referência na matéria[5] no qual ele distinguiu dois tipos de ofício nos primeiros séculos, um dito «catedral», celebrado pelo bispo, pelo clero e pelos cristãos, outro dito «monástico», reservado às comunidades de eremitas. Segundo esse autor, o rito catedral compreendia somente dois ofícios, de manhã e de noite, com uma vigília na madrugada de sábado para domingo. Esses ofícios compreendiam apenas um pequeno número de salmos, escolhidos em função da hora do dia, com cantos e respostas; enquanto a oração monástica supunha a recitação de todos os salmos, do 1º ao 150º em um dado período, a maior parte do tempo em uma semana. Esses ofícios monásticos eram numerosos: às orações terça, sexta e noa que santificavam o dia, juntaram-se uma oração tarde da noite, à meia-noite (distinta da vigília antes da madrugada) depois um ofício da primeira hora (Prima)[6].

Os ofícios monástico e catedral não eram necessariamente concorrentes, mas podiam ser celebrados em complemento na mesma igreja por grupos diferentes, como vemos em Egérie[7].

No decorrer dos séculos, conquanto a estrutura do ofício de tipo catedral se impôs no oriente, a igreja romana privilegiou antes o ofício de tipo monástico e a importância da recitação da salmodia na santificação do tempo[8].

Nas origens do Ofício romano

Muito pouco sabemos sobre o ofício romano antes do século VI. Parece, contudo, claro que se deve falar de ofícios variados, e não de uma única forma de ofício. Nos «tituli», ou igrejas presbiterais, é provável que fossem celebrados apenas os ofícios da manhã e da noite na tradição catedral. O sacramentário de Verona (316) e o sacramentário «gélasien» (séc. VII) nos fornecem orações para a manhã e para a noite, mas são silentes quanto à estrutura dos ofícios.

A maior parte dos autores estima que o ofício das basílicas, cuidado pelos monges, comportava a totalidade das horas canônicas, das Vigílias às Completas, o que influenciou toda a tradição do Ofício ocidental. As descrições das Regras do Mestre[9] e de São Bento[10] são, neste aspecto, indubitavelmente derivadas dessa tradição romana antiga.

No séc. VIII a estrutura do ofício basilical romano se espalhou por todo o ocidente latino.  Em nossas terras, foi graças aos esforços de Pepino, o Breve (714-68) e de Chrodegang, bispo de Metz (+766) que o uso romano suplantou progressivamente os velhos costumes gálicos, esforços retomados por Charlemagne (C. 742-814). Documentos como o Liber Officialis e o Liber de ordine antiphonarii, obras de Amalaire, bispo de Metz (+850) nos fazem descobrir como as estruturas romanas do ofício foram implantadas em território franco, ou ainda associadas às variações locais, para formarem um ofício chamado hoje romano-franco que compreendia uma trama comum, juntamente com numerosos acréscimos locais. Essa situação perdurará até o século XI[11].


Desenvolvimentos a partir do séc. XIII

Até o século XIII essa estrutura, como tal, sofreu pouquíssimas alterações. A sobrecarga de que padecia o Ofício no momento das reformas era antes causada pelos numerosos acréscimos que complementaram o curso ordinário das horas canônicas anos a fio: salmos graduais, salmos penitenciais, Ofício dos Defuntos, Ofício de Nossa Senhora, Símbolo de Santo Atanásio, ladainha dos santos, preces... pouco a pouco sobrecarregaram e sombrearam o Ofício cotidiano. Acrescentemos a isso uma prevalência das festas dos santos no calendário temporal, em que reapareciam regularmente os salmos e as leituras do comum dos santos, em detrimento do curso ordinário[12].

Sob o pontificado de Inocêncio III (1198-1216), a codificação do breviário da Cúria romana devia aliviar esse fardo voltando essencialmente à estrutura do Ofício romano-franco.

Convém esclarecer aqui a noção de «Breviário». Ninguém cogita que esse termo designe o aliviamento ou a abreviação de um ofício outrora mais longo. Ora, os primeiros breviários não constituíam em nada um abreviamento, mas sim a compilação em um único volume de todos os elementos que compõem o Ofício, até hoje contidos nas coleções separadas (antifonários, saltério, hinários...). Por conseguinte, o breviário tornou-se um livro portável, que os clérigos levavam em viagem para celebração privada.

A reforma de Inocêncio III manteve os princípios seculares da leitura da Escritura em um ano, e a recitação de todo o saltério na semana, mas não restabeleceu a primazia do temporal sobre o santoral. É a adoção rápida desse Ofício pela Ordem dos Franciscanos e o impulso desta que contribuiu para a sua expansão em todo o Ocidente.

Uma nova necessidade de reformar se fez sentir em meados do século XVI, numa época em que a vida comunitária esteve em declínio. Os clérigos, frequentemente sozinhos para a recitação do Ofício e assoberbados pelos encargos pastorais cada vez mais numerosos, sentiam pesadamente a extensão das leituras tiradas da Escritura e os trechos de textos dos santos, nos dias em que o santoral precedia o temporal. O Papa Clemente VII (1478-1534) encarregou então um cardeal espanhol de nome Quinones (1485-1540) de pensar numa reforma radical do breviário, a fim de facilitá-lo sobretudo na recitação a solo. As características dessa reforma foram a restauração absoluta da leitura contínua da Escritura e a recitação semanal do saltério. Os salmos foram redistribuídos nas diferentes horas, sem modificações para as festas. Mais do que recitados em sua ordem no saltério, eles foram escolhidos em função da hora. Notar-se-á igualmente o lugar do hino no começo do Ofício e o encurtamento dos textos hagiográficos. Esse breviário se torna rapidamente popular e serve de modelo para a reforma dos breviários locais. Ele encontra logo um certo número de detratores, dentre os quais o teólogo espanhol Jean de Arze[13]. A maior censura deste último a Quinones é que ele elaborou seu Ofício quase exclusivamente em função da recitação do ofício em particular, abandonando assim inúmeros elementos do Ofício coral.

Sensíveis aos argumentos de Arze, os Padres do Concílio de Trento (1645-1663) instituíram uma comissão para a «correção» do breviário. Pela Bula Quod a nobis (1568), o Papa Pio V interditou formalmente o breviário de Quinones e promulgou oficialmente o Breviarium Romanum, que se manteve inalterado até o início do séc. XX, e que conhecemos pelo nome de Breviário do Concílio de Trento[14]. Ele é imposto a toda à Igreja ocidental, com algumas exceções locais.

O Concílio de Trento restituiu ao Ofício divino sua forma tradicional, simplificada mas não alterada. É portanto notável que até 1911, à parte algumas adaptações, a estrutura do Ofício romano e monástico permaneceu aquela que já encontrávamos no sacramentário de Amalaire, no séc. IX[15].


De Pio XII a VaticanoII
Desde o século XVIII , um crescente desejo de reforma veio à superfície.
O desejo era, antes de tudo, de facilitar o recitar das horas canónicas pelos clérigos a elas obrigados, a mais das vezes ocupados por deveres pastorais, ao mesmo tempo que de reduzir tempo gasto em numerosos elementos complementares que obscureciam o verdadeiro sentido de santificar o dia.
Foi tão somente Pio X, passadas tentativas infrutíferas de alguns de seus predecessores, quem instaurou uma comissão para reformar o breviário.
Essa comissão se beneficiava dos trabalhos de ilustres liturgistas do século XIX tais como Dom Guéranger, abade de Solesmes na France e o Pe Batifol, autor de uma muita popular historia do Officio romano.  Seu objetivo principal era o de restaurar a recitação contínua do saltério por uma semana, priorizando o Ofício do Tempo sobre o do Santoral, o ferial sobre as Festas dos Santos.
Os ofícios complementares, , da santa Virgem, dos defuntos, não se acrescentariam mais ao ofício ferial e os elementos anexos e de devoção tais como preces, orações votivas , não estariam mais previstos que em certos dias particulares.
Nesse ínterim, a redistribuição dos salmos tiveram por resultado uma estrutura que modificava radicalmente o esquema nunca modificado desde Amalaire.
Woolfenden evalua essa trabalho como muito insuficiente : O ofício do rito romano passou por mudanças radicais no século XX.  Em 1911, o papa Pio X criou uma comissão para reformar o breviário que devia introduzir um grande número de modificações,  destruindo assim o número de elementos antigos ou tornando o significado deles menos evidentes.[16]
Uma das mudanças mais importantes concerne diretamente nosso tópico.  Se trata do abandono,  nas laudes,  da recitação cotidiana dos salmos 148 à 150 , que deram, portanto o nome a essa hora do dia, nós falaremos sobre mais posteriormente. 
O papa promulgou o novo breviário pela bula Divino afflatu (1911) onde ele estipula que essa reforma é somente a primeira etapa de uma revisão mais profunda do ofício divino.  Por mais drásticas que sejam essas mudanças,  elas somente faziam um prelúdio da publicação, depois do VTII , de um ofício , de uma estrutura totalmente modificada
Dois movimentos complementares iriam se manifestar na primeira metade do século XX. O primeiro foi a publicação em vários países , de um breviário abreviado bilingues ( latim- língua do país) por causa dos leigos.  Foi uma abertura ao povo de Deus, isso que Pio XII chamara a oração do corpo místico de Cristo recitado pelo clero a qual os leigos são convidados a tomar parte.
O segundo, patrocinado pela santa Sé, concretizava o desejo expressado por pio X de reformar profundamente o Ofício. Começava pela nomeação de uma comissão , em 1948, que preparou realmente o trabalho do Concílio. uma primeira tarefa compreendia à edição de uma nova tradução dos salmos mas que foi rapidamente julgada impraticável.
Um primeiro sucesso, sobre João XXIII, foi uma revisão do CR. Na edição de 1961, a primazia do ferial sobre o santoral já era coisa feita e o Ofício de Vigílias se compunha desde então de 9 salmos de 3 leituras repartidas a mais das vezes em um único noturno, excetuados os dias de festas maiores, Nesse ínterim, nenhuma reforma maior havia sido deslanchada.

Ensaio de avaliação crítica da Liturgia das horas

Continuidade ou ruptura? As vantagens do novo Ofício...

De um certo ponto de vista, o novo Ofício oferece um grande número de vantagens em comparação com aquele que substituiu. Ele se caracteriza, dentre outros, por:

a) Clareza e a uniformidade de sua estrutura. Esta é marcada primeiro pela retomada das horas de Laudes e de Vésperas como «pilares» do dia, orações da manhã e da noite. O ofício de Laudes, com efeito, via sua significação um pouco ocultada por sua proximidade com as noturnas (chamadas impropriamente Matinas) e com a hora prima, percebida por alguns como um par da oração do começo do dia.

b) Certa flexibilidade e uma grande facilidade para a recitação: um «Ofício das leituras» que se recita em qualquer momento do dia, até mesmo com a possibilidade de integrá-lo a uma das outras horas (laudes, hora média ou vésperas) e as horas menores reduzidas a uma única «Hora média», mesmo que mantida uma possibilidade, quase teórica, de recitar duas outras horas. Apenas Laudes, Vésperas e Completas são fixadas num momento particular do dia.

c) Um corpo mais importante de leituras escriturais e a leitura cotidiana de um texto patrístico relacionado com o tempo litúrgico e normalmente com o evangelho do dia. Se os outros dois pontos eram de natureza estrutural, este toca ao perfil espiritual e é, na nossa visão, o único aporte maior do novo Ofício divino. O breviário de 1962, com efeito, limitou até certo ponto as leituras das matinas. Quanto às leituras patrísticas, elas eram reservadas aos domingos e às festas, com exceção dos dias de festa com três noturnas, relativamente breves.

Liturgia horarum, tanto na edição típica quanto nas suas traduções, contém um ciclo de leituras repartidas em um ano. Compreende-se facilmente que esse corpo está longe de estar completo. No entanto, no fim do volume, se propõe um ciclo mais completo, que se estende por dois anos. Este permite abordar a maior parte dos livros da sagrada Escritura, ao menos em seus textos mais significativos.

Depois de Campbell, a leitura patrística ou hagiográfica longa responde a um desejo do Cardeal Lercaro[17], presidente do Consilium. Este constatou, com efeito, que os clérigos engajados na vida pastoral dispunham de pouco tempo para consagrar à leitura espiritual. Ele desejava, portanto, integrar esta à leitura do Ofício, e também colocá-la em cotejo com a liturgia do tempo ou do dia.

Tudo está perfeito portanto?

No entanto, ao lado desses poucos pontos positivos, é forçoso constatar que essas novas construções consagram uma ruptura com o sentido secular do Ofício divino. Parece que o objetivo dos reformadores foi muito mais de adaptar o Ofício à vida do homem moderno e à sua oração pessoal do que de guardar o sentido primeiro do Ofício: a santificação do tempo e a oração de toda a Igreja, laus perennis em união com o cosmos. As traduções que se seguiram foram ainda mais longe nesse sentido. Eis um breve inventário de elementos que revelam esse estado de espírito:

a) A omissão de certos salmos ou de certos versículos de salmos. Com efeito, todos os salmos diretamente imprecatórios[18], assim como os versículos de mesma natureza em alguns salmos, são sistematicamente omitidos. Um dos principais «construtores» da Liturgia Horarum, Dom Aimé-Georges Martimort, assim se expressa quanto ao tema:

Seria preciso manter o saltério integralmente? Ao termo das discussões no seio dos grupos peritos, depois no Consilium, após estar também informado do parecer de outras Igrejas oriundas da Reforma, experiência tanto mais interessante que essas Igrejas celebrem tradicionalmente a liturgia em língua moderna, foi decidido que três salmos históricos seriam reservados aos tempos litúrgicos privilegiados[19] (…). Três salmos imprecatórios foram omitidos do curso, e mesmo certos versículos de diversos outros salmos (…). Essa medida, muito discutida é claro, era porém necessária para a celebração pública em vernáculo.

Essa mutilação do saltério é de importância, pois ela priva quem recita o Ofício da totalidade do saltério e desvia o sentido de certos salmos. O historiador e sociólogo Alain Besançon assim a comenta:

A ideia do combate, da guerra, ocupa um tal lugar nas Escrituras cristãs que se pergunta como ela pode ter sido ocultada. Assinale-se que nas edições francesas dos breviários, o saltério foi censurado de seus versículos bíblicos mais belicosos e mais imprecatórios[20], como incompatíveis com a «sensibilidade de hoje em dia». Essa supressão é tipicamente marcionita[21].

A crítica do Pe. Roguet, ele próprio perito do Concílio, é ainda mais severa:

Evidentemente, um cristianismo convencional, enfadonho ou sentimental, se sente mal em face do vigor e da crueza bíblicos: mas há aí justamente uma excelente cura de saúde moral, de vigor religioso. Nada saberia melhor nos precaver contra o cristianismo mundano e superficial que o retorno à Palavra de Deus colocada em sua força[22].

b) A recitação do saltério em quatro semanas: a tradição do Ofício romano esteve, durante séculos, calcada na tradição beneditina que recita todo o saltério numa semana. Ora, no ímpeto de encurtamento dos membros do Consilium, os salmos são agora repartidos em quatro semanas. Para além de uma ruptura da tradição, é também o aspecto sistemático do Ofício que está assim destruído. A regularidade da prática fazia rezar salmos fixos em horas determinadas. Instalou-se um hábito de os encontrar cada semana no mesmo endereço. A nova repartição, muito mais fixa, rompe esse hábito.

Acerca desse último ponto e do anterior, deixaremos a última palavra ao Pe. Alain Lorans, que exprime uma opinião que partilhamos inteiramente:

Assim, só resta na nova liturgia cento e quarenta e quatro salmos, em todas as quatro semanas, e ainda numa versão suavizada. Essa poesia bíblica, judaica, que exprime todos os sentimentos do povo de Israel, todas as suas orações, suas dores, suas esperanças, esse saltério que impregnou a oração de Jesus Cristo, da Virgem Maria, dos Apóstolos foi diluído de um lado e censurado de outro[23].

c) A redução do número de horas e a flexibilidade na recitação: como já mencionamos, somente laudes, vésperas e completas guardam um lugar distribuído no dia. Dentre as horas menores, a prima foi suprimida. Das três outras horas, uma apenas mantém-se obrigatória, chamada «hora média» (lat. Ad horam mediam), à escolha do recitante. A salmodia da hora média varia a cada dia. Os que desejam recitar as outras duas horas devem recorrer aos salmos graduais.

d) A uniformização da estrutura das horas: cada hora, outrora, continha praticamente sempre os mesmos elementos, mas sua disposição variava segundo a hora recitada. Por exemplo, se o hino viesse entre a leitura breve e o Magnificat nas laudes e nas vésperas, ele teria lugar no começo da oração nas horas menores e depois dos salmos nas completas. Segundo Campbell, os reformadores basearam-se na tradição ambrosiana para fazer isso.

A nova liturgia das horas, portanto, coloca sempre o hino no início do ofício. Em seguida vêm a salmodia e a Palavra de Deus. Quanto ao responsório breve, outrora reservado às horas menores e às completas, ele tem lugar a partir de então nas laudes e nas vésperas, mas permanece nas completas. Tem-se, pois, um «ordenamento» das horas que sente a racionalização e a sistematização, em detrimento dos antigos costumes.

e) Ofício das leituras: ele é, com a hora média, uma das grandes inovações do novo ofício. Com efeito, é o sucedâneo daquilo que foi outrora a vigília, ou matinas, mas perde seu caráter típico de «oração durante a noite». A salmodia das matinas havia sido reduzida de doze a nove salmos por Pio X. A do Ofício das leituras foi reduzida ao excesso: três salmos, ou porções de salmo. Em certos dias, ele é de uma brevidade desconcertante. Destacamos aí, porém, um ponto positivo: a leitura sistemática da Escritura num ciclo de um ou dois anos, complementada por uma leitura patrística ou hagiográfica para as festas de santos.

Essa «hora» pode ser recitada em qualquer momento do dia ou da noite: na vigília, antes das Laudes, ou durante o dia, segundo a conveniência. Ela pode até mesmo se juntar a outro ofício.

A leitura repartida em dois anos oferece claramente uma aproximação muito mais completa dos livros bíblicos. Infelizmente, tanto a edição latina quanto as vernaculares da Liturgia horarum contentam-se em propor o ciclo num ano, com as leituras patrísticas adaptadas. A leitura em dois anos é mencionada apenas no fim do volume, sob a forma de tabela, sem complementos patrísticos. Ela  encontrou, supomos, pouco prestígio junto aos clérigos. Antes de mais nada em razão de sua simples menção, discreta e quase marginal, nos breviários; em seguido porque deixaram de lhe acrescentar leituras patrísticas adaptadas. Os monges de Solesmes forneceram, nesse aspecto, uma contribuição muito pouco marcante. Eles publicaram todo esse ciclo nos anos 90, antes de uma versão latim-francês, em seguida inteiramente em fracês. Lamentavelmente, apenas algumas comunidades religiosas e alguns indivíduos utilizam-na atualmente.[24] [25]

f) A pobreza das traduções: a edição típica da Liturgia Horarum era, é claro, destinada a ser traduzida nas diversas línguas vernáculas. Os salmos e as leituras da Escritura são citados numa tradução reconhecida certamente. Mas as partes «próprias», os hinos e as intercessões, foram normalmente «adaptadas», quando  não foram substituídas por produções locais. O resultado é muitas vezes de uma grande pobreza teológica.

Um exame das diferentes versões mostra que a edição francesa é uma das menos fiéis e mais enganosas. Os hinos propostos pela Liturgia horarum formaram objeto de um volume à parte, publicado tardiamente e sem muita divulgação.

Os hinos são composições de autores francófonos. Quase sempre de uma grande banalidade, às vezes poéticos e ao limite da incompreensão. A tradução dos salmos foi emprestada para a TEB. Assim como os hinos, ela também é bastante banal e, aqui, de caráter pouco poético.

No responsório da edição típica, preferiu-se as fabricações de editores e as belas antífonas do Ofício tradicional soam quase sempre mal em sua tradução francesa. Para coroar tudo, as intercessões «adaptadas» e fabricadas, ao término da Laudes e das Vésperas, não têm o caráter solene e respeitoso da edição típica vaticana.

Muito mais do que a edição latina, a versão francesa, como suas irmãs de outras línguas, parece ligada a uma época, numa linguagem que passa e que, cedo ou tarde, deixará de satisfazer.

A leitura desses elementos impõe ela própria uma constatação: na nova estrutura, a natureza do Ofício se vê profundamente modificada. Taft reconhece essa revolução, e estima até mesmo que ela não tenha ido suficientemente longe:

O problema que coloca a nova Liturgia das Horas do rito romano não é de ordem estrutural. A estrutura renovada constitui, sob vários pontos de vista, uma ruptura corajosa com o passado. Os problemas – a língua, a extensão, o curso exageradamente monástico, o excessivo número de salmos por semana – foram afrontados com um espírito imaginativo e decidido. Mas muitos estimam que a recusa de uma ruptura ainda mais radical com não somente as formas mas com a mentalidade desse passado corrompeu a reforma recente do ofício romano.[26] [27]

De nossa parte, só podemos lamentar a ruptura com treze séculos de tradição. É preciso ousar dizer que a reforma litúrgica foi antes de tudo elaborada em assembleia por professores de liturgia e funcionários de um «ecletismo tradicional». Muitos eruditos e especialistas se dão conta disso hoje.

O curso das horas, que começava no Ocidente com a oração durante a noite para «explodir» de alegria ao nascer do sol pelo canto das laudes, a entrega do dia e do trabalho nas mãos de Deus, a santificação do tempo na terceira, sexta e nona horas, o canto das vésperas ao pôr-do-sol e o encerramento do dia com as completas deram lugar a um esquema funcional adaptado à vida moderna, mas que, na verdade, representa somente um tira-gosto diante da bela teologia do Ofício divino. Taft partilha nossa análise, mas não nossas conclusões e nosso pesar.

Recentemente, um bispo me fazia ponderar a contingência do Ofício quanto à sua estrutura e ao seu conteúdo. Essa foi sem dúvida, na história, também a opinião de Quinones ou de alguns reformadores isolados. Esse foi também, é claro, o pressuposto dos membros do Coetus IX. A liberdade que caracteriza bem as liturgias atuais deixou-a ainda maior. Em outras épocas, em quase todos os casos, a Igreja, constatando o fracasso, voltou rapidamente à tradição. Relembremos a sábia decisão de Pio XII de abandonar a tradução do saltério de 1958 e de retornar ao antigo texto da Vulgata. O que seria dele hoje?

O objetivo foi alcançado?

Outra questão que vale a pena ser feita concerne ao objetivo principal dos membros do Coetus: devolver ao Ofício divino seu caráter de oração de todo o povo cristão, e não apenas dos clérigos. Esse objetivo foi atendido? As avaliações nesse tema são extremamente mitigadas. Segundo os autores que estudamos, mesmo se essa perspectiva esteve constantemente presente no espírito dos membros do grupo, Liturgia Horarum permanece concebida como um ofício de tipo monástico, e mesmo em vista, antes de qualquer coisa, da recitação em particular. Citamos ainda Taft a respeito:

Nas discussões relativas ao ofício, muitas vozes bem informadas se levantaram para reivindicar um ofício popular de tipo catedral que possa convir a uma celebração pública paroquial[28]. Mas, após o relato de Annibale Bugnini acerca das deliberações da comissão para a reforma do ofício, três coisas claramente apareceram:

1)      A preocupação primordial foi produzir um livro de oração para o clero e  religiosos.

2)      Presumiu-se simplesmente que essa oração seria feita, na maior parte, em privado. Uma celebração «com o povo» - assim se disse – foi considerada e mesmo desejada, mas o teor e o vocabulário das discussões mostra que isso só era uma exceção e não um ponto de partida em busca da compreensão do ofício.

3)      A base histórica, subjacente a uma grande parte da discussão, foi gravemente deficiente, pois ela se fundou quase exclusivamente sobre uma tradição latina posterior à Idade Média[29].

Depois de alguns decênios de prática, nosso parecer será mais matizado. Se olharmos o estatuto do breviário para o povo cristão antes dos anos 1960, devemos reconhecer que um caminho enorme foi percorrido desde esse tempo. Até então, ele era para os laicos um livro um pouco misterioso, reservado aos clérigos, que tinham a obrigação de recitá-lo. Hoje podemos dizer que o objetivo da Comissão foi parcialmente atendido.

A passagem para a língua vernácula (infelizmente, como já mencionado acima, com traduções extremamente livres e uma certa falta de gosto), a diminuição da salmodia concorreram para colocar o Ofício nas mãos de muitos cristãos. Nos países de expressão francófona, Prière du Temps présent, equivalente atual do Diurnale, é regularmente reeditado e continua a ser vendido. Ele tornou-se a oração habitual dos retiros, dos grupos de oração, e também a oração individual de muitos cristãos fervorosos ou engajados.

O desejo de produzir um ofício adaptado à celebração paroquial não se realizou. O Ofício divino parece o parente pobre dos ofícios paroquiais, mesmo que haja, aqui e ali, tentativas de recitar as vésperas e as laudes em comum. Em contrapartida, as vésperas dominicais que com a Missa formavam os dois polos do domingo caíram aos poucos em desuso em toda parte.

A despeito disso, estamos no direito de nos perguntarmos se para chegar a esse resultado um tal trabalho de remanejamento e de ruptura era necessário.

Na nossa acepção, uma terceira visão teria sido possível. Campbell relata as discussões no grupo, seguidas do desejo de alguns de distinguir um ofício destinado à recitação pelos clérigos e um ofício mais «comunitário» destinado aos leigos, ou à celebração paroquial. Essa ideia não foi conservada. O ideal teria sido talvez, à semelhança de certos ofícios orientais, organizar o Ofício de 1960, fixando-lhe partes essenciais e partes facultativas. Os ofícios do Oriente, nesse aspecto, poderiam servir de exemplo. Eles compreendem geralmente elementos obrigatórios e outros facultativos. Isso permite o desenvolvimento de um ofício completo no quadro monástico, pontifical ou solene, e um ofício mais breve e mais sóbrio no quadro paroquial. Esses ofícios são acompanhados geralmente de ritos particulares, como o acendimento de velas, incensações e procissões, que tiram o ofício de uma recitação muito estática.

Nada proibia uma tal opção, que nem sequer foi invocada, mas que teria evitado uma quebra radical.

Algumas frases de uma pessoa insuspeita, Pe. Patrick Prétot, diretor do Instituto superior de liturgia de Paris, nos servirão de conclusão:

As práticas rituais vindas da tradição são na minha opinião um tesouro que não ousamos contrapor: nós buscamos o «novo» que seria considerado melhor correspondente às mentalidades do nosso tempo. Mas antes de querer inventar (e sabe-se o quanto essa palavra é problemática quando se fala de ritos), não teríamos antes de confiar nos ritos litúrgicos transmitidos? Eles formaram gerações, posto que é a liturgia que nos forma[30].



Bibliografia


Baumstark, A., Liturgie comparée (Editions de Chevetogne, 1940).

Besançon A., La confusion des langues – La crise idéologique de l’Eglise, Calmann-Lévy, 1978, pp. 123-124.

Breviarium Romanum ex Decreto SS. Concilii Tridentini restitutum… {4 volumes} (Tournai, Desclée, 1894).

Campbell S., From Breviary to Liturgy of the Hours (Collegeville, MN, Pueblo Books, 1995, pp. 5-6. 

de Vogüé A., La Règle du Maître, 3 volumes (Sources chrétiennes 105-107) (Paris, Cerf, 1964-1965).

de Vogüé A., La Règle de saint Benoît, 7 volumes,  (Sources Chrétiennes, 181-186, 7ème volume hors série) (Paris, Cerf, 1972-1977).

Egérie, Journal de voyage, éd. P. Maraval, (Sources chrétiennes 296 ; Paris, Cerf, 1952). 

Liturgia Horarum juxta ritum romanum, 4 volumes (Typis Polyglotis Vaticana, Rome, 1971).

Liturgia das Horas, versão CNBB (Ave Maria, São Paulo, 1995).  4 volumes.  2.

Liturgia das horas, segundo o rito romano.(Editora Vozes, Paulinas, São Paulo, 2000). 4 volumes.  Ofício Divino. Renovado conforme o Decreto do Concílio Vaticano II e promulgado pelo Papa Paulo VI. Tradução para o Brasil  da segunda edição típica.

Lectionnaire monastique de l’Office divin. A l'usage de l'abbaye Saint-Pierre de Solesmes, Tome I, Paris (Cerf, 1993) à Tome VII (Paris, Cerf, 1997).

Lorans A. , A propos du lectionnaire – Se libérer des préjugés faciles, dans Lettre à nos frères prêtres, Juin 2008, p. 5.

Martimort A.-G., L’institutio generalis et la nouvelle Liturgia horarum », dans Notitiæ 64, mai-juin 1971, p. 219.

Mateos  J., « The Origins of the Divine Office » dans Worship 41 (1967), pp. 477-485

Mateos J., « The Morning and Evening Office », dans Worship 42 (1963), pp. 31-47,

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Taft R., La Liturgie des heures en Orient et en Occident (Paris, Brepols, 1991).

Woolfenden G., Daily Liturgical Prayer (Burlington, VT, Ashgate, 2004). 




[1]             Liturgia Horarum juxta ritum romanum, 4 volumes (Typis Polyglotis Vaticana, Rome, 1971).
[2]             Traduçao para o Brasil ; 1. Liturgia das Horas, versão CNBB (Ave Maria, São Paulo, 1995).  4 volumes.  2. Liturgia das horas, segundo o rito romano.(Editora Vozes, Paulinas, São Paulo, 2000). 4 volumes.  Ofício Divino. Renovado conforme o Decreto do Concílio Vaticano II e promulgado pelo Papa Paulo VI. Tradução para o Brasil  da segunda edição típica.
[3]             The Study of Liturgy, obra em colaboração, Ed. Ch. Jones, G. Wainwright, E. Yarnold SJ et P. Bradshaw (Londres, SPCK 1992), p. 399.
[4]             Egérie, Journal de voyage, ed. P. Maraval, (Sources chrétiennes 296; Paris, Cerf, 1952). 
[5]             Baumstark, A., Liturgie comparée (Editions de Chevetogne, 1940).
[6]             Ibid., pp.112-115.
[7]             Egérie, op. cit.
[8]             Ver a esse propósito Taft R., La Liturgie des heures en Orient et en Occident (Paris, Brepols, 1991), que nos parece a obra mais completa na matéria.
[9]             de Vogüé A., La Règle du Maître, 3 volumes (Sources chrétiennes 105-107) (Paris, Cerf, 1964-1965).
[10]           de Vogüé A., La Règle de saint Benoît, 7 volumes,  (Sources Chrétiennes, 181-186, 7º volume fora de série) (Paris, Cerf, 1972-1977).
[11]           Campbell S., From Breviary to Liturgy of the Hours (Collegeville, MN, Pueblo Books, 1995, pp. 5-6. 
[12]           Nessa época, o ofício ferial, normalmente mais longo, devia constantemente dar lugar às festas dos santos, geralmente mais breves. O saltério do comum dos santos retornava portanto regularmente, em detrimento da sequência dos salmos distribuídos nos dias da semana. Notemos ainda que os clérigos deviam às vezes preferir um comum dos santos mais breve a um ofício ordinário mais longo.
[13]           Lê-se com interesse nesse tocante o artigo de J.A. Jungmann, «Why was Cardinal Quinonez’ Reformed Breviary a Failure?» dans Public Worship, (London: Challoner, 1957), pp. 200-214.
[14]           Breviarium Romanum ex Decreto SS. Concilii Tridentini restitutum… {4 volumes} (Tournai, Desclée, 1894).
[15]           Campbell, op. cit., pp. 11-14.
[16] Woolfenden  G., Daily Liturgical Prayer (Burlington, VT, Ashgate, 2004), p. 201. Veja tambem  Baumstark, Liturgie comparée, op.cit.
[17]           Campbell, op.cit., p. 214.
[18]        Os salmos 57, 82 e 108.
[19]           Os salmos 77, 104 e 105 são reservados aos sábados do Ofício das leituras nos tempos do Advento, Natal, Quaresma e Páscoa.
[20]           De fato, esse corte concerne a todas as edições provenientes da Liturgia Horarum, em latim e em língua vernacular. Devemos mencionar, justiça seja feita, que a edição francesa manteve os versículos imprecatórios entre colchetes, enquanto a edição latina simplesmente os omitiu todos. Quanto aos três salmos de que fala Martimort, eles simplesmente caíram no esquecimento, qualquer que seja a edição.
[21]           Besançon A., La confusion des langues – La crise idéologique de l’Eglise (Calmann-Lévy, 1978)  pp. 123-124.
[22]           Roguet A.M., On nous change la religion (Cerf, 1959)  pp. 91-92.
[23]           Lorans A. , A propos du lectionnaire – Se libérer des préjugés faciles, em Lettre à nos frères prêtres, Junho 2008, p. 5.
[24]           Lectionnaire monastique de l’Office divin. A l'usage de l'abbaye Saint-Pierre de Solesmes,  ed. De Solesmes. Tomo I (Paris, Cerf, 1993)  a Tomo VII (Paris, Cerf, 1997).
[25]           Lectures pour chaque jour de l’année, ed. de Solesmes.  Vol. 1 (Paris, Cerf, 1994) a Vol. 4  (Paris, Cerf, 1995).
[26]           Ver p.ex. Storey W., «The Liturgy of the Hours: Cathedral versus Monastery», em: Gallen J. (ed.), Christians at Prayer (Liturgical Studies), Notre Dame e Londres, University of Notre Dame Press, 1977, pp. 61-82.
[27]           Taft, op.cit., p. 306.
[28]           Dentre eles, Herman Schmidt SJ e Juan Mateos SJ, consultores do Concílioa para a execução da Constituição da santa Liturgia. Os artigos de Mateos, «The Origins of the Divine Office» em Worship 41 (1967), pp. 477-485 e «The Morning and Evening Office», em Worship 42 (1963), pp. 31-47, foram escritos originalmente em latim na qualidade de vota submetida ao Concílio.
[29]           Taft, op.cit.,  p. 306.
[30]                 Prétot P., «Se donner des repères pour avancer» em: Célébrer 339, outubro 2005, p. 45.
 
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