Recebi do Pe. Jean-Pierre Herman e sacerdote da diocese de Namur (Bélgica). Ele nasceu em 1959. Exerceu até hoje diversos ministérios em Europa, nos Estados Unidos e no Brasil. É autor de diversos artigos em língua francesa sobre a história da liturgia.
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O
Ofício romano do séc. VI aos nossos dias
Continuidade
ou ruptura?
Um
ensaio de avaliação crítica
Pe Jean-Pierre Herman
Ofício
Romano. Um breve percurso histórico
Em 1971 apareceu a primeira edição da Liturgia
Horarum juxta ritum romanum[1],
que substituiu o venerável Breviarium romanum. Um dos objetivos dos
reformadores do Vaticano II era restituir ao Ofício divino seu estatuto de
oração do povo de Deus. Hoje as edições em vernáculo do novo Ofício[2]
são amplamente difundidas e utilizadas para a oração comunitária e individual
dos cristãos, clérigos ou laicos. Pareceu-nos, contudo, conveniente arriscar
uma avaliação após quarenta anos de prática. Apresentaremos aqui, portanto,
duas questões cruciais: por um lado «O Ofício divino atual é realmente o digno
herdeiro do Breviário romano, ou ele marca uma ruptura com uma tradição
secular?» e de outro: «Os reformadores, preocupados em restituir ao povo
cristão a oração das horas, alcançaram seu objetivo?» A breve reconstrução
histórica a seguir ajudar-nos-á a responder.
O Ofício divino, «série de ofícios não-sacramentais
celebrados ou recitados em intervalos regulares durante o dia (e à noite)
visando à santificação do tempo»[3],
sem dúvida só apareceu na Igreja por volta do século IV, após o edito de
Constantino. Com efeito, encontramos os primeiros traços nas narrativas de
viagens de Egérie[4],
nas quais o autor descreve, dentre outras coisas, os diferentes momentos de
oração nos locais santos de Jerusalém.
Em 1949, Anton Baumstark publicou um estudo que se tornou
referência na matéria[5]
no qual ele distinguiu dois tipos de ofício nos primeiros séculos, um dito
«catedral», celebrado pelo bispo, pelo clero e pelos cristãos, outro dito
«monástico», reservado às comunidades de eremitas. Segundo esse autor, o rito catedral
compreendia somente dois ofícios, de manhã e de noite, com uma vigília na
madrugada de sábado para domingo. Esses ofícios compreendiam apenas um pequeno
número de salmos, escolhidos em função da hora do dia, com cantos e respostas;
enquanto a oração monástica supunha a recitação de todos os salmos, do 1º ao
150º em um dado período, a maior parte do tempo em uma semana. Esses ofícios
monásticos eram numerosos: às orações terça, sexta e noa que santificavam o
dia, juntaram-se uma oração tarde da noite, à meia-noite (distinta da vigília
antes da madrugada) depois um ofício da primeira hora (Prima)[6].
Os ofícios monástico e catedral não eram
necessariamente concorrentes, mas podiam ser celebrados em complemento na mesma
igreja por grupos diferentes, como vemos em Egérie[7].
No decorrer dos séculos, conquanto a estrutura do
ofício de tipo catedral se impôs no oriente, a igreja romana privilegiou antes
o ofício de tipo monástico e a importância da recitação da salmodia na
santificação do tempo[8].
Nas origens do Ofício romano
Muito pouco sabemos sobre o ofício romano antes do
século VI. Parece, contudo, claro que se deve falar de ofícios variados, e não
de uma única forma de ofício. Nos «tituli», ou igrejas presbiterais, é provável
que fossem celebrados apenas os ofícios da manhã e da noite na tradição
catedral. O sacramentário de Verona (316) e o sacramentário «gélasien» (séc.
VII) nos fornecem orações para a manhã e para a noite, mas são silentes quanto
à estrutura dos ofícios.
A maior parte dos autores estima que o ofício das
basílicas, cuidado pelos monges, comportava a totalidade das horas canônicas,
das Vigílias às Completas, o que influenciou toda a tradição do Ofício
ocidental. As descrições das Regras do Mestre[9]
e de São Bento[10]
são, neste aspecto, indubitavelmente derivadas dessa tradição romana antiga.
No séc. VIII a estrutura do ofício basilical romano se
espalhou por todo o ocidente latino. Em
nossas terras, foi graças aos esforços de Pepino, o Breve (714-68) e de
Chrodegang, bispo de Metz (+766) que o uso romano suplantou progressivamente os
velhos costumes gálicos, esforços retomados por Charlemagne (C. 742-814).
Documentos como o Liber Officialis e o Liber de ordine antiphonarii,
obras de Amalaire, bispo de Metz (+850) nos fazem descobrir como as estruturas
romanas do ofício foram implantadas em território franco, ou ainda associadas
às variações locais, para formarem um ofício chamado hoje romano-franco
que compreendia uma trama comum, juntamente com numerosos acréscimos locais.
Essa situação perdurará até o século XI[11].
Desenvolvimentos a
partir do séc. XIII
Até o século XIII essa estrutura, como tal, sofreu
pouquíssimas alterações. A sobrecarga de que padecia o Ofício no momento das
reformas era antes causada pelos numerosos acréscimos que complementaram o
curso ordinário das horas canônicas anos a fio: salmos graduais, salmos
penitenciais, Ofício dos Defuntos, Ofício de Nossa Senhora, Símbolo de Santo
Atanásio, ladainha dos santos, preces... pouco a pouco sobrecarregaram e
sombrearam o Ofício cotidiano. Acrescentemos a isso uma prevalência das festas
dos santos no calendário temporal, em que reapareciam regularmente os salmos e
as leituras do comum dos santos, em detrimento do curso ordinário[12].
Sob o pontificado de Inocêncio III (1198-1216), a
codificação do breviário da Cúria romana devia aliviar esse fardo voltando
essencialmente à estrutura do Ofício romano-franco.
Convém esclarecer aqui a noção de «Breviário». Ninguém
cogita que esse termo designe o aliviamento ou a abreviação de um ofício
outrora mais longo. Ora, os primeiros breviários não constituíam em nada um
abreviamento, mas sim a compilação em um único volume de todos os elementos que
compõem o Ofício, até hoje contidos nas coleções separadas (antifonários,
saltério, hinários...). Por conseguinte, o breviário tornou-se um livro
portável, que os clérigos levavam em viagem para celebração privada.
A reforma de Inocêncio III manteve os princípios
seculares da leitura da Escritura em um ano, e a recitação de todo o saltério
na semana, mas não restabeleceu a primazia do temporal sobre o santoral. É a
adoção rápida desse Ofício pela Ordem dos Franciscanos e o impulso desta que
contribuiu para a sua expansão em todo o Ocidente.
Uma nova necessidade de reformar se fez sentir em
meados do século XVI, numa época em que a vida comunitária esteve em declínio.
Os clérigos, frequentemente sozinhos para a recitação do Ofício e assoberbados
pelos encargos pastorais cada vez mais numerosos, sentiam pesadamente a
extensão das leituras tiradas da Escritura e os trechos de textos dos santos,
nos dias em que o santoral precedia o temporal. O Papa Clemente VII (1478-1534)
encarregou então um cardeal espanhol de nome Quinones (1485-1540) de pensar
numa reforma radical do breviário, a fim de facilitá-lo sobretudo na recitação a
solo. As características dessa reforma foram a restauração absoluta da
leitura contínua da Escritura e a recitação semanal do saltério. Os salmos
foram redistribuídos nas diferentes horas, sem modificações para as festas.
Mais do que recitados em sua ordem no saltério, eles foram escolhidos em função
da hora. Notar-se-á igualmente o lugar do hino no começo do Ofício e o
encurtamento dos textos hagiográficos. Esse breviário se torna rapidamente
popular e serve de modelo para a reforma dos breviários locais. Ele encontra
logo um certo número de detratores, dentre os quais o teólogo espanhol Jean de
Arze[13].
A maior censura deste último a Quinones é que ele elaborou seu Ofício quase
exclusivamente em função da recitação do ofício em particular, abandonando
assim inúmeros elementos do Ofício coral.
Sensíveis aos argumentos de Arze, os Padres do
Concílio de Trento (1645-1663) instituíram uma comissão para a «correção» do
breviário. Pela Bula Quod a nobis (1568), o Papa Pio V interditou formalmente
o breviário de Quinones e promulgou oficialmente o Breviarium Romanum,
que se manteve inalterado até o início do séc. XX, e que conhecemos pelo nome
de Breviário do Concílio de Trento[14].
Ele é imposto a toda à Igreja ocidental, com algumas exceções locais.
O Concílio de Trento restituiu ao Ofício divino sua
forma tradicional, simplificada mas não alterada. É portanto notável que até
1911, à parte algumas adaptações, a estrutura do Ofício romano e monástico
permaneceu aquela que já encontrávamos no sacramentário de Amalaire, no séc. IX[15].
De Pio XII a
VaticanoII
Desde o
século XVIII , um crescente desejo de reforma veio à superfície.
O desejo
era, antes de tudo, de facilitar o recitar das horas canónicas pelos clérigos a
elas obrigados, a mais das vezes ocupados por deveres pastorais, ao mesmo tempo
que de reduzir tempo gasto em numerosos elementos complementares que
obscureciam o verdadeiro sentido de santificar o dia.
Foi tão
somente Pio X, passadas tentativas infrutíferas de alguns de seus predecessores,
quem instaurou uma comissão para reformar o breviário.
Essa
comissão se beneficiava dos trabalhos de ilustres liturgistas do século XIX
tais como Dom Guéranger, abade de Solesmes na France e o Pe Batifol, autor de
uma muita popular historia do Officio romano.
Seu objetivo principal era o de restaurar a recitação contínua do
saltério por uma semana, priorizando o Ofício do Tempo sobre o do Santoral, o
ferial sobre as Festas dos Santos.
Os ofícios
complementares, , da santa Virgem, dos defuntos, não se acrescentariam mais ao
ofício ferial e os elementos anexos e de devoção tais como preces, orações
votivas , não estariam mais previstos que em certos dias particulares.
Nesse
ínterim, a redistribuição dos salmos tiveram por resultado uma estrutura que modificava
radicalmente o esquema nunca modificado desde Amalaire.
Woolfenden
evalua essa trabalho como muito insuficiente : O ofício do rito romano passou por mudanças radicais no século
XX. Em 1911, o papa Pio X criou uma comissão para reformar o breviário
que devia introduzir um grande número de modificações, destruindo assim o
número de elementos antigos ou tornando o significado deles menos evidentes.[16]
Uma das mudanças mais importantes concerne diretamente nosso
tópico. Se trata do abandono, nas laudes, da recitação
cotidiana dos salmos 148 à 150 , que deram, portanto o nome a essa hora do dia,
nós falaremos sobre mais posteriormente.
O papa promulgou o novo breviário pela bula Divino afflatu (1911) onde ele estipula que essa reforma é somente
a primeira etapa de uma revisão mais profunda do ofício divino. Por mais
drásticas que sejam essas mudanças, elas somente faziam um prelúdio da
publicação, depois do VTII , de um ofício , de uma estrutura totalmente
modificada
Dois movimentos complementares iriam se manifestar na primeira metade do
século XX. O primeiro foi a publicação em vários países , de um breviário
abreviado bilingues ( latim- língua do país) por causa dos leigos. Foi
uma abertura ao povo de Deus, isso que Pio XII chamara a oração do corpo místico de Cristo recitado pelo clero a qual os
leigos são convidados a tomar parte.
O segundo,
patrocinado pela santa Sé, concretizava o desejo expressado por pio X de
reformar profundamente o Ofício. Começava pela nomeação de uma comissão , em
1948, que preparou realmente o trabalho do Concílio. uma primeira tarefa
compreendia à edição de uma nova tradução dos salmos mas que foi rapidamente
julgada impraticável.
Um primeiro
sucesso, sobre João XXIII, foi uma revisão do CR. Na edição de 1961, a primazia
do ferial sobre o santoral já era coisa feita e o Ofício de Vigílias se
compunha desde então de 9 salmos de 3 leituras repartidas a mais das vezes em
um único noturno, excetuados os dias de festas maiores, Nesse ínterim, nenhuma
reforma maior havia sido deslanchada.
Ensaio de avaliação crítica da Liturgia das horas
Continuidade ou
ruptura? As vantagens do novo Ofício...
De um certo ponto de vista, o novo Ofício oferece um
grande número de vantagens em comparação com aquele que substituiu. Ele se
caracteriza, dentre outros, por:
a) Clareza e a uniformidade de sua
estrutura. Esta é marcada primeiro pela retomada das horas de Laudes e de
Vésperas como «pilares» do dia, orações da manhã e da noite. O ofício de
Laudes, com efeito, via sua significação um pouco ocultada por sua proximidade
com as noturnas (chamadas impropriamente Matinas) e com a hora prima, percebida
por alguns como um par da oração do começo do dia.
b) Certa flexibilidade e uma grande
facilidade para a recitação: um «Ofício das leituras» que se recita em qualquer
momento do dia, até mesmo com a possibilidade de integrá-lo a uma das outras
horas (laudes, hora média ou vésperas) e as horas menores reduzidas a uma única
«Hora média», mesmo que mantida uma possibilidade, quase teórica, de recitar
duas outras horas. Apenas Laudes, Vésperas e Completas são fixadas num momento
particular do dia.
c) Um corpo mais importante de
leituras escriturais e a leitura cotidiana de um texto patrístico relacionado
com o tempo litúrgico e normalmente com o evangelho do dia. Se os outros dois
pontos eram de natureza estrutural, este toca ao perfil espiritual e é, na
nossa visão, o único aporte maior do novo Ofício divino. O breviário de 1962,
com efeito, limitou até certo ponto as leituras das matinas. Quanto às leituras
patrísticas, elas eram reservadas aos domingos e às festas, com exceção dos
dias de festa com três noturnas, relativamente breves.
Liturgia horarum, tanto na edição típica quanto nas
suas traduções, contém um ciclo de leituras repartidas em um ano. Compreende-se
facilmente que esse corpo está longe de estar completo. No entanto, no fim do
volume, se propõe um ciclo mais completo, que se estende por dois anos. Este
permite abordar a maior parte dos livros da sagrada Escritura, ao menos em seus
textos mais significativos.
Depois de Campbell, a leitura
patrística ou hagiográfica longa responde a um desejo do Cardeal Lercaro[17],
presidente do Consilium. Este constatou, com efeito, que os clérigos
engajados na vida pastoral dispunham de pouco tempo para consagrar à leitura
espiritual. Ele desejava, portanto, integrar esta à leitura do Ofício, e também
colocá-la em cotejo com a liturgia do tempo ou do dia.
Tudo está perfeito
portanto?
No entanto, ao lado desses poucos pontos positivos, é
forçoso constatar que essas novas construções consagram uma ruptura com o
sentido secular do Ofício divino. Parece que o objetivo dos reformadores foi
muito mais de adaptar o Ofício à vida do homem moderno e à sua oração pessoal
do que de guardar o sentido primeiro do Ofício: a santificação do tempo e a
oração de toda a Igreja, laus perennis em união com o cosmos. As
traduções que se seguiram foram ainda mais longe nesse sentido. Eis um breve
inventário de elementos que revelam esse estado de espírito:
a) A omissão de certos salmos ou
de certos versículos de salmos. Com efeito, todos os salmos diretamente
imprecatórios[18],
assim como os versículos de mesma natureza em alguns salmos, são
sistematicamente omitidos. Um dos principais «construtores» da Liturgia
Horarum, Dom Aimé-Georges Martimort, assim se expressa quanto ao tema:
Seria preciso manter o saltério integralmente? Ao termo das discussões
no seio dos grupos peritos, depois no Consilium, após
estar também informado do parecer de outras Igrejas oriundas da Reforma, experiência
tanto mais interessante que essas Igrejas celebrem tradicionalmente a liturgia
em língua moderna, foi decidido que três salmos históricos seriam reservados
aos tempos litúrgicos privilegiados[19]
(…). Três salmos imprecatórios foram omitidos do curso, e mesmo certos
versículos de diversos outros salmos (…). Essa medida, muito discutida é claro,
era porém necessária para a celebração pública em vernáculo.
Essa mutilação do saltério é de
importância, pois ela priva quem recita o Ofício da totalidade do saltério e
desvia o sentido de certos salmos. O historiador e sociólogo Alain Besançon
assim a comenta:
A ideia do combate, da guerra,
ocupa um tal lugar nas Escrituras cristãs que se pergunta como ela pode ter
sido ocultada. Assinale-se que nas edições francesas dos breviários, o saltério
foi censurado de seus versículos bíblicos mais belicosos e mais imprecatórios[20],
como incompatíveis com a «sensibilidade de hoje em dia». Essa supressão é
tipicamente marcionita[21].
A crítica do Pe. Roguet, ele
próprio perito do Concílio, é ainda mais severa:
Evidentemente, um cristianismo
convencional, enfadonho ou sentimental, se sente mal em face do vigor e da
crueza bíblicos: mas há aí justamente uma excelente cura de saúde moral, de
vigor religioso. Nada saberia melhor nos precaver contra o cristianismo mundano
e superficial que o retorno à Palavra de Deus colocada em sua força[22].
b) A recitação do saltério em
quatro semanas: a tradição do Ofício romano esteve, durante séculos,
calcada na tradição beneditina que recita todo o saltério numa semana. Ora, no
ímpeto de encurtamento dos membros do Consilium, os salmos são agora
repartidos em quatro semanas. Para além de uma ruptura da tradição, é também o
aspecto sistemático do Ofício que está assim destruído. A regularidade da
prática fazia rezar salmos fixos em horas determinadas. Instalou-se um hábito
de os encontrar cada semana no mesmo endereço. A nova repartição, muito mais
fixa, rompe esse hábito.
Acerca desse último ponto e do
anterior, deixaremos a última palavra ao Pe. Alain Lorans, que exprime uma
opinião que partilhamos inteiramente:
Assim, só resta na nova liturgia
cento e quarenta e quatro salmos, em todas as quatro semanas, e ainda numa
versão suavizada. Essa poesia bíblica, judaica, que exprime todos os sentimentos
do povo de Israel, todas as suas orações, suas dores, suas esperanças, esse
saltério que impregnou a oração de Jesus Cristo, da Virgem Maria, dos Apóstolos
foi diluído de um lado e censurado de outro[23].
c) A redução do número de horas
e a flexibilidade na recitação: como já mencionamos, somente laudes,
vésperas e completas guardam um lugar distribuído no dia. Dentre as horas
menores, a prima foi suprimida. Das três outras horas, uma apenas mantém-se
obrigatória, chamada «hora média» (lat. Ad horam mediam), à escolha do
recitante. A salmodia da hora média varia a cada dia. Os que desejam recitar as
outras duas horas devem recorrer aos salmos graduais.
d) A uniformização da estrutura
das horas: cada hora, outrora, continha praticamente sempre os mesmos
elementos, mas sua disposição variava segundo a hora recitada. Por exemplo, se
o hino viesse entre a leitura breve e o Magnificat nas laudes e nas
vésperas, ele teria lugar no começo da oração nas horas menores e depois dos
salmos nas completas. Segundo Campbell, os reformadores basearam-se na tradição
ambrosiana para fazer isso.
A nova liturgia das horas,
portanto, coloca sempre o hino no início do ofício. Em seguida vêm a salmodia e
a Palavra de Deus. Quanto ao responsório breve, outrora reservado às horas
menores e às completas, ele tem lugar a partir de então nas laudes e nas
vésperas, mas permanece nas completas. Tem-se, pois, um «ordenamento» das horas
que sente a racionalização e a sistematização, em detrimento dos antigos
costumes.
e) Ofício das leituras: ele
é, com a hora média, uma das grandes inovações do novo ofício. Com efeito, é o
sucedâneo daquilo que foi outrora a vigília, ou matinas, mas perde seu caráter
típico de «oração durante a noite». A salmodia das matinas havia sido reduzida
de doze a nove salmos por Pio X. A do Ofício das leituras foi reduzida ao
excesso: três salmos, ou porções de salmo. Em certos dias, ele é de uma
brevidade desconcertante. Destacamos aí, porém, um ponto positivo: a leitura
sistemática da Escritura num ciclo de um ou dois anos, complementada por uma
leitura patrística ou hagiográfica para as festas de santos.
Essa «hora» pode ser recitada em
qualquer momento do dia ou da noite: na vigília, antes das Laudes, ou durante o
dia, segundo a conveniência. Ela pode até mesmo se juntar a outro ofício.
A leitura repartida em dois anos
oferece claramente uma aproximação muito mais completa dos livros bíblicos.
Infelizmente, tanto a edição latina quanto as vernaculares da Liturgia
horarum contentam-se em propor o ciclo num ano, com as leituras patrísticas
adaptadas. A leitura em dois anos é mencionada apenas no fim do volume, sob a
forma de tabela, sem complementos patrísticos. Ela encontrou, supomos, pouco prestígio junto aos
clérigos. Antes de mais nada em razão de sua simples menção, discreta e quase
marginal, nos breviários; em seguido porque deixaram de lhe acrescentar
leituras patrísticas adaptadas. Os monges de Solesmes forneceram, nesse
aspecto, uma contribuição muito pouco marcante. Eles publicaram todo esse ciclo
nos anos 90, antes de uma versão latim-francês, em seguida inteiramente em
fracês. Lamentavelmente, apenas algumas comunidades religiosas e alguns
indivíduos utilizam-na atualmente.[24]
[25]
f) A pobreza das traduções:
a edição típica da Liturgia Horarum era, é claro, destinada a ser
traduzida nas diversas línguas vernáculas. Os salmos e as leituras da Escritura
são citados numa tradução reconhecida certamente. Mas as partes «próprias», os
hinos e as intercessões, foram normalmente «adaptadas», quando não foram substituídas por produções locais.
O resultado é muitas vezes de uma grande pobreza teológica.
Um exame das diferentes versões
mostra que a edição francesa é uma das menos fiéis e mais enganosas. Os hinos
propostos pela Liturgia horarum formaram objeto de um volume à parte,
publicado tardiamente e sem muita divulgação.
Os hinos são composições de autores
francófonos. Quase sempre de uma grande banalidade, às vezes poéticos e ao
limite da incompreensão. A tradução dos salmos foi emprestada para a TEB. Assim
como os hinos, ela também é bastante banal e, aqui, de caráter pouco poético.
No responsório da edição típica,
preferiu-se as fabricações de editores e as belas antífonas do Ofício
tradicional soam quase sempre mal em sua tradução francesa. Para coroar tudo,
as intercessões «adaptadas» e fabricadas, ao término da Laudes e das Vésperas,
não têm o caráter solene e respeitoso da edição típica vaticana.
Muito mais do que a edição latina,
a versão francesa, como suas irmãs de outras línguas, parece ligada a uma
época, numa linguagem que passa e que, cedo ou tarde, deixará de satisfazer.
A leitura desses elementos impõe ela própria uma
constatação: na nova estrutura, a natureza do Ofício se vê profundamente
modificada. Taft reconhece essa revolução, e estima até mesmo que ela não tenha
ido suficientemente longe:
O problema que coloca a nova Liturgia das Horas do
rito romano não é de ordem estrutural. A estrutura renovada constitui, sob
vários pontos de vista, uma ruptura corajosa com o passado. Os problemas – a
língua, a extensão, o curso exageradamente monástico, o excessivo número de
salmos por semana – foram afrontados com um espírito imaginativo e decidido.
Mas muitos estimam que a recusa de uma ruptura ainda mais radical com não
somente as formas mas com a mentalidade desse passado corrompeu a reforma
recente do ofício romano.[26]
[27]
De nossa parte, só podemos lamentar a ruptura com
treze séculos de tradição. É preciso ousar dizer que a reforma litúrgica foi
antes de tudo elaborada em assembleia por professores de liturgia e
funcionários de um «ecletismo tradicional». Muitos eruditos e especialistas se
dão conta disso hoje.
O curso das horas, que começava no Ocidente com a
oração durante a noite para «explodir» de alegria ao nascer do sol pelo canto
das laudes, a entrega do dia e do trabalho nas mãos de Deus, a santificação do
tempo na terceira, sexta e nona horas, o canto das vésperas ao pôr-do-sol e o
encerramento do dia com as completas deram lugar a um esquema funcional
adaptado à vida moderna, mas que, na verdade, representa somente um tira-gosto
diante da bela teologia do Ofício divino. Taft partilha nossa análise, mas não
nossas conclusões e nosso pesar.
Recentemente, um bispo me fazia ponderar a
contingência do Ofício quanto à sua estrutura e ao seu conteúdo. Essa foi sem
dúvida, na história, também a opinião de Quinones ou de alguns reformadores
isolados. Esse foi também, é claro, o pressuposto dos membros do Coetus
IX. A liberdade que caracteriza bem as liturgias atuais deixou-a ainda maior.
Em outras épocas, em quase todos os casos, a Igreja, constatando o fracasso,
voltou rapidamente à tradição. Relembremos a sábia decisão de Pio XII de
abandonar a tradução do saltério de 1958 e de retornar ao antigo texto da
Vulgata. O que seria dele hoje?
O objetivo foi
alcançado?
Outra questão que vale a pena ser feita concerne ao
objetivo principal dos membros do Coetus: devolver ao Ofício divino seu
caráter de oração de todo o povo cristão, e não apenas dos clérigos. Esse
objetivo foi atendido? As avaliações nesse tema são extremamente
mitigadas. Segundo os autores que estudamos, mesmo se essa perspectiva esteve
constantemente presente no espírito dos membros do grupo, Liturgia Horarum
permanece concebida como um ofício de tipo monástico, e mesmo em vista, antes
de qualquer coisa, da recitação em particular. Citamos ainda Taft a respeito:
Nas discussões
relativas ao ofício, muitas vozes bem informadas se levantaram para reivindicar
um ofício popular de tipo catedral que possa convir a uma celebração pública
paroquial[28].
Mas, após o relato de Annibale Bugnini acerca das deliberações da comissão para
a reforma do ofício, três coisas claramente apareceram:
1)
A preocupação primordial foi
produzir um livro de oração para o clero e
religiosos.
2)
Presumiu-se simplesmente que essa
oração seria feita, na maior parte, em privado. Uma celebração «com o povo» -
assim se disse – foi considerada e mesmo desejada, mas o teor e o vocabulário
das discussões mostra que isso só era uma exceção e não um ponto de partida em busca
da compreensão do ofício.
3)
A base histórica, subjacente a uma grande parte da discussão, foi
gravemente deficiente, pois ela se fundou quase exclusivamente sobre uma
tradição latina posterior à Idade Média[29].
Depois de alguns decênios de prática, nosso parecer
será mais matizado. Se olharmos o estatuto do breviário para o povo cristão
antes dos anos 1960, devemos reconhecer que um caminho enorme foi percorrido
desde esse tempo. Até então, ele era para os laicos um livro um pouco
misterioso, reservado aos clérigos, que tinham a obrigação de recitá-lo. Hoje
podemos dizer que o objetivo da Comissão foi parcialmente atendido.
A passagem para a língua vernácula (infelizmente, como
já mencionado acima, com traduções extremamente livres e uma certa falta de
gosto), a diminuição da salmodia concorreram para colocar o Ofício nas mãos de
muitos cristãos. Nos países de expressão francófona, Prière du Temps présent,
equivalente atual do Diurnale, é regularmente reeditado e continua a ser
vendido. Ele tornou-se a oração habitual dos retiros, dos grupos de oração, e
também a oração individual de muitos cristãos fervorosos ou engajados.
O desejo de produzir um ofício adaptado à celebração
paroquial não se realizou. O Ofício divino parece o parente pobre dos ofícios
paroquiais, mesmo que haja, aqui e ali, tentativas de recitar as vésperas e as
laudes em comum. Em contrapartida, as vésperas dominicais que com a Missa
formavam os dois polos do domingo caíram aos poucos em desuso em toda parte.
A despeito disso, estamos no direito de nos
perguntarmos se para chegar a esse resultado um tal trabalho de remanejamento e
de ruptura era necessário.
Na nossa acepção, uma terceira visão teria sido
possível. Campbell relata as discussões no grupo, seguidas do desejo de alguns de
distinguir um ofício destinado à recitação pelos clérigos e um ofício mais
«comunitário» destinado aos leigos, ou à celebração paroquial. Essa ideia não
foi conservada. O ideal teria sido talvez, à semelhança de certos ofícios
orientais, organizar o Ofício de 1960, fixando-lhe partes essenciais e partes
facultativas. Os ofícios do Oriente, nesse aspecto, poderiam servir de exemplo.
Eles compreendem geralmente elementos obrigatórios e outros facultativos. Isso
permite o desenvolvimento de um ofício completo no quadro monástico, pontifical
ou solene, e um ofício mais breve e mais sóbrio no quadro paroquial. Esses
ofícios são acompanhados geralmente de ritos particulares, como o acendimento
de velas, incensações e procissões, que tiram o ofício de uma recitação muito
estática.
Nada proibia uma tal opção, que nem sequer foi
invocada, mas que teria evitado uma quebra radical.
Algumas frases de uma pessoa insuspeita, Pe. Patrick
Prétot, diretor do Instituto superior de liturgia de Paris, nos servirão de
conclusão:
As práticas rituais
vindas da tradição são na minha opinião um tesouro que não ousamos contrapor:
nós buscamos o «novo» que seria considerado melhor correspondente às
mentalidades do nosso tempo. Mas antes de querer inventar (e sabe-se o quanto
essa palavra é problemática quando se fala de ritos), não teríamos antes de
confiar nos ritos litúrgicos transmitidos? Eles formaram gerações, posto que é
a liturgia que nos forma[30].
Bibliografia
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Chevetogne, 1940).
Besançon A., La confusion
des langues – La crise idéologique de l’Eglise, Calmann-Lévy, 1978, pp.
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Breviarium Romanum ex Decreto SS.
Concilii Tridentini restitutum… {4 volumes} (Tournai, Desclée,
1894).
Campbell S., From
Breviary to Liturgy of the Hours (Collegeville, MN, Pueblo Books, 1995, pp.
5-6.
de Vogüé A., La Règle du
Maître, 3 volumes (Sources chrétiennes 105-107) (Paris, Cerf, 1964-1965).
de Vogüé A., La Règle de saint Benoît, 7
volumes, (Sources Chrétiennes, 181-186,
7ème volume hors série) (Paris, Cerf, 1972-1977).
Egérie, Journal de voyage, éd. P. Maraval,
(Sources chrétiennes 296 ; Paris, Cerf, 1952).
Liturgia Horarum juxta ritum
romanum, 4 volumes (Typis Polyglotis Vaticana, Rome,
1971).
Liturgia das Horas, versão CNBB (Ave Maria, São Paulo,
1995). 4 volumes. 2.
Liturgia das horas, segundo o rito romano.(Editora Vozes,
Paulinas, São Paulo, 2000). 4 volumes. Ofício Divino. Renovado conforme o Decreto
do Concílio Vaticano II e promulgado pelo Papa Paulo VI. Tradução para o
Brasil da segunda edição típica.
Lectionnaire monastique de l’Office
divin. A l'usage de l'abbaye Saint-Pierre de Solesmes, Tome I, Paris
(Cerf, 1993) à Tome VII (Paris, Cerf, 1997).
Lorans A. , A propos du
lectionnaire – Se libérer des préjugés faciles, dans Lettre à nos frères prêtres, Juin 2008, p. 5.
Martimort A.-G., L’institutio generalis et la nouvelle Liturgia horarum », dans Notitiæ 64, mai-juin 1971, p. 219.
Mateos J., « The Origins of the Divine Office » dans Worship 41 (1967), pp. 477-485
Mateos J., « The Morning and Evening
Office », dans Worship 42
(1963), pp. 31-47,
Prétot P., « Se
donner des repères pour avancer » dans : Célébrer 339, octobre 2005, p. 45.
Roguet A.M., On nous
change la religion (Cerf, 1959) pp.
91-92.
Storey W., « The Liturgy of the
Hours : Cathedral versus Monastery », dans : Gallen J. (éd.), Christians at Prayer (Liturgical Studies), Notre Dame et Londres,
University of Notre Dame Press, 1977, pp. 61-82.
The Study of Liturgy, ouvrage en collaboration, Ed. Ch.
Jones, G. Wainwright, E. Yarnold SJ et P. Bradshaw (Londres, SPCK 1992), p.
399.
Taft R., La Liturgie des heures en Orient et en
Occident (Paris, Brepols, 1991).
Woolfenden
G., Daily Liturgical Prayer (Burlington, VT,
Ashgate, 2004).
[2] Traduçao para o Brasil ; 1. Liturgia das Horas,
versão CNBB (Ave Maria, São Paulo, 1995).
4 volumes. 2. Liturgia das horas, segundo o rito romano.(Editora Vozes, Paulinas, São
Paulo, 2000). 4 volumes. Ofício Divino. Renovado conforme o Decreto
do Concílio Vaticano II e promulgado pelo Papa Paulo VI. Tradução para o
Brasil da segunda edição típica.
[3] The Study of Liturgy,
obra em colaboração, Ed. Ch. Jones, G. Wainwright, E. Yarnold SJ et P. Bradshaw
(Londres, SPCK 1992), p. 399.
[6] Ibid., pp.112-115.
[8] Ver a esse propósito Taft R., La Liturgie des heures en Orient et en Occident (Paris, Brepols,
1991), que nos parece a obra mais completa na matéria.
[9] de Vogüé A., La Règle du Maître, 3
volumes (Sources chrétiennes 105-107) (Paris, Cerf, 1964-1965).
[10] de Vogüé A., La Règle de saint Benoît, 7 volumes, (Sources Chrétiennes, 181-186, 7º volume fora
de série) (Paris, Cerf, 1972-1977).
[11]
Campbell S., From
Breviary to Liturgy of the Hours (Collegeville, MN, Pueblo Books, 1995, pp.
5-6.
[12] Nessa época, o ofício ferial,
normalmente mais longo, devia constantemente dar lugar às festas dos santos,
geralmente mais breves. O saltério do comum dos santos retornava portanto
regularmente, em detrimento da sequência dos salmos distribuídos nos dias da
semana. Notemos ainda que os clérigos deviam às vezes preferir um comum dos
santos mais breve a um ofício ordinário mais longo.
[13] Lê-se com interesse nesse tocante o
artigo de J.A. Jungmann, «Why was
Cardinal Quinonez’ Reformed Breviary a Failure?» dans Public Worship, (London: Challoner, 1957), pp. 200-214.
[14]
Breviarium Romanum ex Decreto SS. Concilii Tridentini restitutum… {4
volumes} (Tournai, Desclée, 1894).
[19] Os salmos 77, 104 e 105 são reservados aos sábados do
Ofício das leituras nos tempos do Advento, Natal, Quaresma e Páscoa.
[20] De fato, esse corte concerne a todas
as edições provenientes da Liturgia Horarum, em latim e em língua
vernacular. Devemos mencionar, justiça seja feita, que a edição francesa
manteve os versículos imprecatórios entre colchetes, enquanto a edição latina
simplesmente os omitiu todos. Quanto aos três salmos de que fala Martimort,
eles simplesmente caíram no esquecimento, qualquer que seja a edição.
[21] Besançon A., La confusion des langues – La crise idéologique de l’Eglise
(Calmann-Lévy, 1978) pp. 123-124.
[23]
Lorans
A. , A propos du lectionnaire – Se libérer des préjugés faciles, em Lettre à nos frères prêtres, Junho 2008,
p. 5.
[24] Lectionnaire
monastique de l’Office divin. A l'usage de l'abbaye
Saint-Pierre de Solesmes, ed. De Solesmes. Tomo
I (Paris, Cerf, 1993) a Tomo VII (Paris,
Cerf, 1997).
[25]
Lectures pour chaque jour de l’année, ed. de Solesmes. Vol. 1 (Paris, Cerf, 1994) a Vol. 4 (Paris, Cerf, 1995).
[26] Ver p.ex. Storey W., «The Liturgy of the Hours:
Cathedral versus Monastery», em: Gallen
J. (ed.), Christians at Prayer (Liturgical
Studies), Notre Dame e Londres, University of Notre Dame Press, 1977, pp.
61-82.
[28] Dentre eles, Herman Schmidt SJ e
Juan Mateos SJ, consultores do Concílioa para a execução da Constituição da
santa Liturgia. Os artigos de Mateos, «The Origins of the Divine
Office» em Worship 41 (1967), pp.
477-485 e «The Morning and Evening Office», em Worship 42 (1963), pp. 31-47, foram escritos originalmente em latim
na qualidade de vota submetida ao
Concílio.