A lacônica pergunta que coloco como título deste texto fica melhor desenvolvida nesta outra: o canto gregoriano deve ter exclusividade no Rito Romano da Liturgia Católica?
A resposta, muito simples, é “não”. Mas por que comecei com esta pergunta? Pareceu-me importante abordar este assunto devido aos textos que tenho escrito aqui no Salvem a Liturgia sobre o Próprio da Missa e mais especificamente ao meu hábito, neles, de sempre falar do canto gregoriano.
Não só existem o hábito e a prática de utilizar também outros tipos de música, como a própria letra da lei da Igreja, expressa em documentos escritos por papas, nunca disse que o gregoriano fosse a única música litúrgica.
Neste ponto um amante do canto gregoriano pode estar com um pé atrás em relação ao que estou dizendo. Mas não é preciso recear. O canto gregoriano tem um lugar de honra, tem o “primeiro lugar”, o que é diferente de exclusividade.
O canto gregoriano, tendo evoluído muito provavelmente a partir de outros tipos de música monódica (a uma voz e sem instrumentos), incluindo a música da liturgia judaica, nasceu com a liturgia, sendo dela, digamos, um irmão. A persistirmos nesta comparação, podemos dizer que outros tipos de música litúrgica são filhos da liturgia.
É difícil dizer em que momento se usou pela primeira vez, na Liturgia, música que não era canto gregoriano. Não por falta de registro histórico; mas, sim, porque as melodias gregorianas foram tomadas como base para a composição de música nova. Primeiro, começou-se a cantar gregoriano a duas vozes; à voz original se superpunha uma segunda voz que, embora cantasse notas diferentes, limitava-se a transpor a melodia original, simplesmente. Isto nem de longe é composição. Quando a segunda voz passou a cantar coisas diferentes, a primeira manteve a melodia gregoriana. Quando se adicionaram uma terceira e uma quarta voz, continuou havendo a voz que mantinha as notas da melodia gregoriana original, mesmo que o seu ritmo houvesse sido estilizado todo em notas longas, na Escola de Notre Dame por volta do ano 1000. Neste ponto, embora não se tivesse canto gregoriano "puro", ele também não estava ausente. Além disto, alternavam-se partes em canto gregoriano e a várias vozes, sendo estas compostas (o que na época era novidade).
Os séculos seguintes trouxeram o desenvolvimento da polifonia (esse tipo de música a várias vozes) a ponto de a Igreja, mantendo o primeiro lugar do canto gregoriano, mencioná-la em seus documentos como um dos tipos de música aceitável para a Liturgia. De fato, no Rito Tridentino, que hoje também chamamos de Forma Extraordinária do Rito Romano, três são os tipos de música permitidos: o canto gregoriano, a polifonia e os tons salmódicos (aqueles utilizados para o canto de salmos).
Isto no caso de a Missa ser cantada. Quando não era cantada (naquilo chamamos de “Missa Baixa”), podia não haver música, ou então se cantavam hinos (muitas vezes em latim, com música em canto gregoriano) ou, em alguns lugares, hinos em vernáculo, que se tornaram aquilo que a Igreja chama de canto litúrgico popular. Este canto litúrgico popular foi mais largamente permitido pelo papa Pio XII, nos anos 50, e sua promoção também foi pedida pelo Concílio Vaticano II.
Entretanto, a expressão “canto popular litúrgico” não pode ser compreendida, devido ao adjetivo “popular”, como música de dança, nem como música carregada de sotaque folclórico, nem como música pop moderna ou música urbana. Se é para se admitir algum caráter étnico, ganha-se muito que ele seja sóbrio e que evoque religiosidade. A possível inculturação quer ajudar no sentimento piedoso, e não na transformação da Liturgia em celebração folclórica ou étnica.
Assim, “canto popular religioso” precisa ser bem separado daquilo a que muitas vezes chamamos de “música popular” no simples âmbito da cultura musical profana. Embora talvez ainda tenhamos algum caminho a percorrer na compreensão mais precisa do que é canto popular religioso, algumas características já parecem claras, como a acessibilidade um pouco mais imediata ao fiel que não tenha estudado música. Penso aqui em aspectos técnicos, como extensão vocal e melismas – dois aspectos que precisam ser moderados no canto popular litúrgico. Esta moderação, ainda acrescento, pode ser encontrada até mesmo em certas composições gregorianas!
Estas três opções musicais (gregoriano, polifonia e canto popular religioso) continuam sendo, inclusive no Rito Novo, as possibilidades na Liturgia. A formulação desta “lista tripla” não foi realizada artificialmente, mas decretada de modo oficial a partir da prática já existente. Um dos seus intentos era impedir o uso de canções populares (agora, sim, de caráter folclórico) que não se adequavam ao espírito litúrgico. Esse uso errôneo de tais canções não começou há dez, vinte ou quarenta anos, mas já em séculos passados. Sempre foi necessária atenção, por parte da Igreja (suas autoridades e também dos próprios músicos litúrgicos atentos), para evitar que o simples gosto musical profano invadisse a Liturgia e a descaracterizasse.
Tanto quanto os objetos utilizados na Liturgia são separados para o uso sagrado, também a música litúrgica (que é um objeto, embora não palpável) precisa ser separada para o serviço sacro.
Todos estes comentários fazem parte do meu raciocínio, aqui, procurando mostrar em que medida o canto gregoriano tem o primeiro lugar, e que negar sua exclusividade não lhe tira a menor lasca de prestígio.
Se soubéssemos que amanhã, precisamente, seria celebrada uma única Missa no mundo, e que ela seria a última antes do fim dos tempos, talvez devêssemos utilizar o canto gregoriano nela. Porém, como até lá temos um número enorme de Missas sendo oferecidas, existe lugar para todos os tipos de música litúrgica digna, inúmeras delas celebradas com canto gregoriano, outras com polifonia, outras com o “canto popular religioso” e outras com demais tipos de música que, de alguma maneira, se encaixem nestas definições e que se revelem apropriadas para o culto divino e para o fortalecimento da piedade dos fiéis e também do sacerdote.