Claro: o mau estado da música litúrgica faz parte do mau estado da própria Liturgia que, sublime nos livros, nem sempre é realizada sublimemente na prática. Ademais, problemas litúrgicos (em geral, mas também os problemas litúrgicos musicais) não são novidade dos nossos dias.
Quando falamos de música litúrgica inadequada, pensamos sem dúvida nas paróquias, pensamos numa maioria. Nunca deixou de haver lugares em que as celebrações foram sempre digníssimas e, a música, incrível. Estes lugares mantiveram a tradição católica e a obediência às leis litúrgicas da Igreja. Não podemos, entretanto, nos contentar, nunca, com que a ortodoxia litúrgica se restrinja a umas poucas casas religiosas e a umas pouquíssimas paróquias ou a algumas catedrais europeias que se podem contar nos dedos de uma mão. Não podemos, porque as leis da Igreja valem para toda ela (não existem “realidades” locais que permitam ignorar as normas, e mesmo adaptações lícitas precisam ser estudadas e autorizadas), e todos os fiéis do mundo têm direito à Liturgia decente, da qual é parte integrante e crucial a música litúrgica decente. Os fiéis têm este direito; por outro lado, os mesmos fiéis não têm direito a desobedecer nem forçar a desobediência às normas. Os fiéis não podem tomar os sacerdotes como reféns obrigados a fazer concessões litúrgicas sob a pena de se esvaziarem os bancos do templo (embora, claro, nem todo abuso litúrgico nasça do desejo de agradar fiéis).
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O chamado Novus Ordo, ou “Missa de Paulo VI”, traz em suas instruções algumas flexibilidades que não podem, a meu ver, ser interpretadas como deixa para a solução mais cômoda. Em outras palavras, a licitude não é suficiente para a beleza e a riqueza da Liturgia (ainda que indispensável).
Neste texto eu gostaria de falar a respeito do Próprio da Santa Missa, em cuja regulamentação existe a flexibilidade a que me refiro. Infelizmente, mesmo esta flexibilidade sendo grande, tem sido com enorme freqüência forçada até a quebra pela interpretação errônea das instruções do Missal e do Concílio Vaticano II.
Para esclarecer o que é o Próprio, valho-me agora do Ordinário. Na Missa, o Ordinário se compõe do Kyrie (Senhor, tende piedade - parte essencial do Ato Penitencial, embora não seja, sozinho, o Ato Penitencial inteiro), do Gloria, do Credo, do Sanctus (Santo, Santo, Santo) e do Agnus Dei (Cordeiro de Deus). Dependendo da Missa, pode ocorrer de se omitir uma dessas partes. Mas o que importa para nós, agora, é que elas são sempre iguais. Em qualquer Missa o Gloria é sempre igual, como são sempre iguais as outras quatro partes.
O Próprio, por sua vez, muda sempre; é diferente para cada Missa. Por esta razão é que ele se chama assim: cada Missa tem seu “próprio Próprio”. As partes do Próprio também são cinco: Introito (Entrada), Salmo Responsorial (ou Gradual), Alleluia (com o seu versículo), Ofertório e Comunhão. Mas o Alleluia é mesmo do Próprio? Ele não é sempre igual, sempre “Alleluia”? Bem, a parte “Alleluia” é sempre igual; mas o seu versículo é próprio, é diferente a cada Missa. Porém, em muitos lugares ele não é usado, fazendo com que muitos sequer saibam que ele existe. Mas ele existe e deve ser usado.
Neste texto falarei apenas da primeira das partes do Próprio, o Introito ou Entrada. Que o leitor não se assuste com isto; o fato de eu falar apenas dele não significa que o assunto seja muito complexo, e sim que não quero alongar demais este texto cuja introdução já ocupa bom espaço.
Como muitos sabem ou, se não sabem, imaginarão, o Introito ou Entrada é o momento em que o sacerdote entra para iniciar a celebração da Santa Missa; não só ele mas também possíveis acólitos, diácono etc. Na grande maioria das igrejas a música utilizada neste momento é designada como “canto de entrada”, o que não está errado. Entretanto, a música costuma ser escolhida com base simplesmente no gosto dos fiéis dessa igreja específica, ou no gosto do músico ou dos músicos da Liturgia. Para esclarecer isto, vamos a fonte: o que a Igreja prescreve para este momento? Vejamos os números 47 e 48 da IGMR. Os grifos são meus.
47. Reunido o povo, enquanto o sacerdote entra com o diácono e os ministros, começa o canto da entrada. A finalidade desse canto é abrir a celebração, promover a união da assembléia, introduzir no mistério do tempo litúrgico ou da festa, e acompanhar a procissão do sacerdote e dos ministros.
48. O canto é executado alternadamente pelo grupo de cantores e pelo povo, ou pelo cantor e pelo povo, ou só pelo grupo de cantores. Pode-se usar a antífona com seu salmo, do Gradual romano ou do Gradual simples, ou então outro canto condizente com a ação sagrada e com a índole do dia ou do tempo, cujo texto tenha sido aprovado pela Conferência dos Bispos.
Não havendo canto à entrada, a antífona proposta no Missal é recitada pelos fiéis, ou por alguns deles, ou pelo leitor; ou então, pelo próprio sacerdote, que também pode adaptá-la a modo de exortação inicial (cf. n. 31).Numerosas questões devem ser comentadas aqui. Julgo importante reorganizar algumas informações do texto para melhor compreensão do leitor.
Primeiramente, no número 48, a IGMR diz quem executa o canto de entrada. São três opções:
1 – grupo de cantores e povo
2 – cantor e povo
3 – só o grupo de cantores.
Fica bastante claro que não existe nenhuma obrigação ao canto da assembleia, ainda que ela figure nas duas primeiras opções. Por que esta preocupação? Porque uma objeção comum à utilização de certos tipos de música é que o povo fique impedido de “participar”, por não saber “cantar junto”. Já se explicou muito, porém, que a participação também inclui a audição atenta e o silêncio sagrado. Além disto, a lógica nos faz concluir ser impossível usar na Liturgia somente música que a assembleia conheça (o que a Igreja não pede, a propósito).
Outro aspecto que vemos é a distinção entre “grupo de cantores” e “cantor”. Certamente o uso do plural e do singular deixa claro a que o texto se refere; a meu ver, porém, em igrejas nas quais o “grupo de cantores” seja composto por uma única pessoa, esta voz solitária pode assumir os papéis atribuídos ao grupo de cantores. A IGMR não deixa de pensar nas igrejas mais modestas ao dizer “grupo de cantores” e não “coro”. Especialmente no Brasil, por motivos culturais, é freqüentemente difícil instituir um coro de igreja.
Adiante a IGMR diz o que se deve cantar como “canto de Entrada”. Listemos:
1 – Antífona com seu salmo, do Gradual Romano ou do Gradual Simples
2 – outro canto condizente com a ação sagrada e com a índole do dia ou do tempo, cujo texto tenha sido aprovado pela Conferência dos Bispos (a CNBB, no caso do Brasil).
Quantas pessoas conhecem a opção número 1? Muitas não a conhecem, e obviamente não são culpadas disso já que nunca aprenderam nem ouviram falar dessa possibilidade, para muitos, até mesmo incompreensível: o que é uma “antífona”? O que é “Gradual Romano”, o que é “Gradual Simples”?
A primeira pergunta vemos depois. Responder à segunda é fácil: são livros de canto gregoriano. Isto é: a Igreja prescreve para o Introito (o canto de Entrada) nada menos do que canto gregoriano.
Mas e a segunda opção? Muitos poderão dizer sobre ela: “aí, sim!”, porque ela é a mais praticada, por muitos a única conhecida. Alguns poderão interpretar que a primeira opção se aplica só a casas religiosas, só a monges e, mesmo assim só alguns deles. Um hábito que chega a ser uma mera curiosidade, de certa forma, e por tantas pessoas apenas conhecido por meio de filmes.
Esta interpretação é completamente equivocada. A IGMR não se preocupa em estabelecer normas para casas religiosas e normas para paróquias, mas tão somente normas litúrgicas. O canto gregoriano é posto pela Igreja em primeiro lugar no que concerne à Liturgia Romana: Em igualdade de condições, o canto gregoriano ocupa o primeiro lugar, como próprio da Liturgia romana. (IGMR, 41)
É também o caso de pensarmos por que a Igreja se expressa desta maneira na IGMR; resumidamente, o que Ela nos diz é: “no canto de entrada você pode usar a melodia gregoriana ou outro canto condizente”. Talvez fosse mais simples dizer apenas “use um canto condizente”; ou não?
O fato é que a Igreja está nos orientando, aqui, a respeito do texto. Tanto que, na segunda opção, ela coloca como condição o aval dos bispos locais. Além disto, pense o leitor comigo: se a Igreja permite que a Missa seja no idioma do lugar, e o gregoriano é sempre em latim, isto significa que qualquer canto no idioma do lugar (que chamamos de “vernáculo”) se encaixará na segunda opção.
Não se trata exatamente disto. A Igreja, de fato, indica os livros: o Gradual Romano e o Gradual Simples. Porém, pode-se utilizar o texto lá indicado, traduzido à língua do lugar, para compor uma outra música a se utilizar neste momento da Liturgia (e em outros que seguem as mesmas regras).
Tomemos um exemplo. Suponha o leitor que teremos uma Missa do Sexto Domingo do Tempo Comum, e vamos providenciar a música para o Introito. Vamos ao Gradual Romano. Lá encontramos, para o Sexto Domingo do Tempo Comum, uma melodia gregoriana que utiliza o texto, em latim, dos versículos 3 e 4 do Salmo 30:
Esto mihi Deum protectorem, et in locum refugii, ut salvum me facias: quoniam firmamentum meum, et refugium meum est tu: et proper nomen tuum dux mihi eris, et enutries me.Em português:
Sede para mim um Deus protetor e um lugar de refúgio, para me salvar; pois sois meu apoio e meu refúgio; e pelo vosso nome haveis de me conduzir e me alimentar.Este texto é parte integrante da Liturgia da Missa do Sexto Domingo do Tempo Comum. É seu Introito. Foi assinalado pela Igreja para fazer parte da celebração do sacrifício nesta data litúrgica específica. Ainda que a mesma Igreja permita o uso de música com um outro texto (e mesmo que aprovado pela conferência episcopal), quanto não perdemos ao simplesmente ignorar este tesouro litúrgico, colocando em seu lugar textos sem tradição nenhuma e, na maioria das vezes, de gosto duvidoso, ou até mesmo com problemas doutrinários e sentimentalismo?
Pessoalmente, interpreto como uma espécie de gesto de enorme tolerância da Santa Igreja o fato de permitir aquilo se ficou conhecido como alius cantus aptus – o famoso “outro canto apto”, “outro canto adequado” – que substitua o texto mais propriamente litúrgico. E utilizo aqui a palavra tolerância no seu sentido de aceitação sem muito gosto, sem a chancela, por assim dizer, de autenticidade e propriedade.
O fato de que o Introito (e o Próprio inteiro) muda a cada Missa faz com que a cada Domingo seja usada uma música diferente. Isto impede que o “povo cante junto”? Talvez impeça. Entretanto, já não devemos mais estar presos à ideia errônea de que a “participação” ou mesmo a “participação ativa” implique necessariamente em fazer coisas (seja canto, recitação etc.), ou, para ser mais exato, fazer coisas perceptíveis a todos. Ouvir atentamente o Introito cantado é participação ativa. Meditar seu texto é participação ativa. Não me parece errado, tampouco, que o fiel recite o mesmo texto em voz baixa. Lembre-se ainda o piedoso costume de acompanhar visualmente a procissão de entrada: a cruz, o incenso, os ministros sagrados e seus paramentos.
Como o leitor talvez tenha percebido, não defendo que se cante o Introito sem informar aos fiéis que texto está sendo cantado. Evidentemente é a Deus que se dirige a Liturgia; e se o fiel sabe o que está sendo cantando ele se pode unir mais perfeitamente a ela. Considero importante que os fiéis tenham em mãos o texto que está sendo cantado pelo cantor ou grupo de cantores, mesmo que a música utilize o texto na língua do país. Imprescindível? Não; mas, sendo possível, acredito que auxilie bastante. Pode-se imprimir o Próprio do dia para distribuir aos presentes, caso não exista algum outro tipo de guia publicado. Por misericórdia, abstenhamo-nos de retroprojetores ou datashow...
Neste momento, um parêntese. Vimos que a IGMR nos indica o Gradual Romano como fonte do texto para o Introito. Ocorre que o Missal também provê uma antífona de Entrada. Em muitos casos, o texto do Gradual e o texto do Missal são o mesmo, mas isto não é a regra. Se um compositor desejar servir-se do texto do Missal para escrever a música, pode fazê-lo. Em textos futuros abordarei mais detalhadamente este “problema”. Fechemos o parêntese.
Alguém poderá argumentar que é rara, ou mesmo raríssima, uma assembleia capaz de cantar o Introito junto com o cantor ou cantores. Não discordo; volto a insistir em que é desnecessário, em certas partes da Liturgia, o canto da assembleia inteira, e que justamente por a música cantada por todos precisar ser mais acessível, é enriquecedor para a Liturgia que o Próprio possa dispensar os fiéis, possibilitando o uso de composições mais elaboradas. Não se pode admitir o empobrecimento da Liturgia como preço a pagar por uma ilusória “participação ativa” de todos os presentes à Missa.
Este é o início do Introito gregoriano Esto mihi, do Sexto Domingo do Tempo Comum. Note-se que a escrita do canto gregoriano usa uma pauta de quatro linhas, enquanto a notação musical moderna utiliza cinco. A notação gregoriana continua sendo usada para o canto gregoriano, e os livros são publicados neste sistema.
Esta melodia, como as outras utilizadas no Próprio, são chamadas de antífonas. Eu havia adiado, alguns parágrafos atrás, a explicação do que significa esta palavra. Mesmo assim não a explicarei inteiramente, deixando isto para um outro texto. Por enquanto, apenas digo que é um nome utilizado para designar as melodias do Próprio (e algumas outras).
Encorajo todos aqueles que desejem aprender a ler este tipo de notação a procurar informações ou quem lhes possa ensinar. Garanto-lhes que a dificuldade é muito menor do que parece à primeira vista. Se o caro leitor não sabe ler a partitura acima, olhe para ela como, quando criança, antes de ser alfabetizado, olhava jornais, livros e placas: coisas desconhecidas que em pouco tempo se transformam em coisas totalmente claras.
Como afirmei anteriormente, podemos tomar este texto, originalmente em latim, e musicá-lo na língua do país. O próximo exemplo é esse mesmo Introito, mas em inglês, retirado de um livro para o uso anglicano (católicos oriundos do anglicanismo). A melodia utilizada nesta adaptação, feita por C. David Burt, é mais simples do que a do gregoriano acima.
Por sua vez, o americano Richard Rice escreveu música para o Próprio da Missa, também em inglês, destinada a coros. Suas composições são simples (seu trabalho se chama Simple Choral Gradual, isto é, “gradual coral simples”) e muito boas para a Liturgia, além de muito acessíveis para coros. Copio aqui o início do seu Introito Esto mihi. Não estranhe o leitor a diferença de texto: Rice usa uma tradução diferente daquela usada no exemplo anterior.
A Igreja chama os compositores a escrever nova música litúrgica para enriquecer o repertório, de maneira que cultivemos o tesouro já existente e que floresçam novas composições, escritas tanto para grandes coros de nível profissional como para pequenos grupos de cantores amadores (mas de bom nível e que cultivem o estudo da música) ou mesmo para o cantor único ao qual alguma igrejas se veem forçadas a restringir-se.
Eu, pessoalmente, me encaixo nesta última categoria; embora minha formação seja precisamente a de músico, não sou cantor, mas na Liturgia tenho exercido esta função, além da de instrumentista. E, tendo em vista esta necessidade, procuro compor o Próprio de cada Missa dentro das minhas possibilidades.
Enquanto escrevo este texto, ocupo-me precisamente da composição do Próprio para o Sexto Domingo do Tempo Comum. “Meu” Introito começa assim:
A assembleia não cantará isto – e, como já mostrei, nem precisa que seja assim. Este Introito poderia cobrir toda a ação litúrgica até a chegada do sacerdote ao altar. No caso específico, o sacerdote da igreja em que toco pede que eu não exclua a entrada cantada pelos fiéis. Da minha parte, eu nunca quis omitir o Próprio. Concordando com a minha preocupação, o sacerdote propôs que a sua entrada seja realmente acompanhada por música cantada pelos fiéis, até que ele chegue ao altar. Assim que esta termine, canto o Introito. Não é inconveniente que o padre “espere” o Introito ser cantado: ele é litúrgico. Além disto, a IGMR especifica no número 48 que se o Introito não for cantado, ele é lido. Repito o trecho que fala disso:
(...)Não havendo canto à entrada, a antífona proposta no Missal é recitada pelos fiéis, ou por alguns deles, ou pelo leitor; ou então, pelo próprio sacerdote, que também pode adaptá-la a modo de exortação inicial (cf. n. 31).Este trecho nos mostra também que é perfeitamente possível uma Missa sem música. Certamente que a sua ausência faz falta no que se trata de beleza. Mas a falta de música não é motivo para não se realizar a Missa. No meu entendimento isto é um forte indicativo de que não se pode usar qualquer música na celebração do sacrifício: se a única música disponível é qualquer uma, fora da Liturgia e inadequada a ela, que seja deixada de lado. Convido todos aqueles envolvidos com a Liturgia a não terem medo de ter a Santa Missa sem música, se for o caso.
Há ainda diversas coisas que eu gostaria de dizer, mas prefiro deixá-las para os próximos textos. Como se recordam, o Introito é apenas o primeiro item do Próprio. Possivelmente, no entanto, eu venha a tratar deles com o uso de menos espaço e, por conseguinte, tomando menos tempo ao leitor.
Deixo, como ilustração final deste post, um vídeo. Claro, trata-se de música litúrgica executada com excelência espantosa e fineza incrível. Pessoalmente também aprecio um pouco de rusticidade moderada. Mas sei que o leitor apreciará o que deixo agora. Trata-se da Missa de Natal na Catedral de Westminster, na Inglaterra, em 2009. O vídeo mostra precisamente o Introito. Trata-se do versículo 7 do Salmo 2: o Senhor me disse: tu és meu Filho, eu hoje te gerei – em latim: Dominus dixit ad me: Filius meus es tu, ego hodie genui te.
Ninguém argumente que é assim por ser na Europa. Nós também podemos fazer assim no Brasil. É o que a Igreja quer que façamos. Comparemos com as coisas que temos visto, e compreendamos o que é melhor. Está nas nossas mãos.