Gostaria de responder ao comentário anônimo de 1 de maio de 2010 16:48 no post Missa Afro = Inculturação?. Como vou precisar de espaço, em vez de responder lá no formulário de comentários, decidi fazê-lo em post próprio.
Primeiramente, penso que é covardia apresentar-se para criticar de forma tão agressiva sem sequer se identificar. Mas, de qualquer forma, não receberei a crítica como uma ofensa, mas como válida, já que me deu a oportunidade de pesquisar e aprender mais.
Em geral, nossa abordagem é positiva, ou seja, pela apresentação de bons exemplos, mas às vezes as críticas a “excessos de criatividade litúrgica” se fazem necessárias, como nos casos das Missas Afro, que tentam nos “vender” como inculturação, mas que não o são em verdade.
O caríssimo anônimo diz que a Missa Afro não é inculturação, é apenas adaptação do rito Romano, com “enriquecimento” simbólico nas expressões litúrgicas; alega, ainda, que os elementos inseridos (dança, música percussiva, oferta de alimentos, uso de roupas coloridas) são parte da cultura brasileira; acrescenta que adaptações já estão previstas na SC (30-42) e que as Conferências Episcopais Latino-Americanas e a CNBB sancionaram esse tipo de celebração que remonta os anos 70. Por fim, diz que as normas litúrgicas existem justamente para que as expressões de fé não sejam a repetição morta da lei.
Imagino que o anônimo considera a liturgia católica muito pobre, pois segundo ele, necessita de “enriquecimento” simbólico, quando, na verdade, nossa liturgia é riquíssima e plena de significado, não sendo necessária a inserção de qualquer elemento a ela estranho.
A dança, música alegre, oferta de alimentos, uso de roupas coloridas, tudo isso inegavelmente faz parte de nossa cultura, e está presente, por exemplo, nas festas populares, como as festas juninas, em que usam-se roupas coloridas, dança-se quadrilha, cantam-se músicas alegres, nas procissões, na religiosidade popular, como os pãezinhos de Santo Antônio, ou os doces no dia de São Cosme e São Damião… e muitos outros exemplos.
Já a vivência litúrgica de nosso país começou cedo (assim que chegaram, os portugueses mandaram rezar uma Missa, como aprendemos nos livros de história), e depois de séculos, já assimilamos completamente a noção de sagrado, de silêncio, de contemplação. Não dependemos de adaptações – muito menos de inculturação - para compreendermos e participarmos dos mistérios sagrados.
Toda adaptação deve ser proposta para auxiliar a percepção do mistério, como podemos ler na IGMR:
Para que a celebração corresponda mais plenamente às normas e ao espírito da sagrada Liturgia, nesta Instrução e no Ordinário da Missa propõem-se algumas ulteriores adaptações, que são da competência ou do Bispo diocesano ou das Conferências Episcopais. (IGMR, capítulo IX, n° 386).
Veja que a celebração deve corresponder às normas e ao espírito litúrgico, não sendo lícito “jogar as normas para o alto” em nome de um suposto “enriquecimento” simbólico.
Bom, o anônimo nos diz que a CNBB sancionou a Missa Afro (mas não trouxe citação de nenhum documento que o prove). Será que a CNBB tem alçada para tal? Vejamos.
Existem dois tipos de modificações no rito que, a princípio, poderiam ser feitas: a adaptação e a inculturação.
As adaptações são intervenções menos radicais, e começam pela tradução dos textos do Missal para a língua vernácula da Igreja local.(IGMR, cap IX, n° 389). Podemos citar como exemplo as Orações Eucarísticas utilizadas aqui no Brasil, que contêm respostas que não existem no original.
Prosseguindo na leitura da IGMR:
Pertence às Conferências Episcopais definir as adaptações que se indicam nesta Instrução geral e no Ordinário da Missa e que, depois de confirmadas pela Sé Apostólica, hão-de ser introduzidas no próprio Missal, tais como:
– os gestos e as atitudes corporais dos fiéis (cf. acima, nn. 43).
– o gesto de veneração do altar e do Evangeliário (cf. acima, n. 273);
– os textos dos cânticos de entrada, para a apresentação dos dons e da Comunhão (cf. acima, nn. 48, 74, 87);
– as leituras da Sagrada Escritura a utilizar em situações particulares (cf. acima, n. 362);
– a forma de dar a paz (cf. acima, n. 82);
– o modo de receber a sagrada Comunhão (cf. acima, nn. 160, 283);
– o material do altar e das alfaias sagradas, principalmente dos vasos sagrados, e também o material, a forma e a cor das vestes litúrgicas (cf. acima, nn. 301, 326, 329, 339, 342-346).
Poderão ser introduzidos no Missal Romano, em lugar conveniente, os Directórios ou as Orientações pastorais que as Conferências Episcopais julgarem úteis, previamente confirmados pela Sé Apostólica. (IGMR, cap IX, n° 390)
Vemos então que a última palavra sobre quaisquer alterações no rito romano, ainda que definidas pela Conferência episcopal, é da Santa Sé. Gostaria então que o caro anônimo então trouxesse aqui o documento da Santa Sé aprovando as alterações promovidas pela CNBB no rito para instituir a “Missa Afro”.
Continuo citando a IGMR (grifos meus):
395. Por fim, se a participação dos fiéis e o seu bem espiritual exigirem adaptações e diversidades mais profundas, para que a celebração sagrada corresponda à índole e às tradições dos diversos povos, as Conferências Episcopais, de acordo com o art. 40 da Constituição sobre a sagrada Liturgia, poderão propô-las à Sé Apostólica, e introduzi-las com o seu consentimento, sobretudo naqueles povos onde o Evangelho foi anunciado mais recentemente. (o que não é o caso do Brasil) [156] Observem-se atentamente as normas especiais dadas pela Instrução «A Liturgia romana e a inculturação».[157]
Quanto ao modo de agir neste assunto, proceda-se da seguinte maneira:
Em primeiro lugar, exponha-se à Sé Apostólica uma pormenorizada proposta prévia para que, concedidas as devidas faculdades, se proceda à elaboração de cada adaptação.
Uma vez aprovadas estas propostas pela Sé Apostólica, levem-se a cabo as experimentações pelo tempo e nos lugares estabelecidos. Se for o caso, terminado o tempo de experimentação, a Conferência Episcopal determinará a prossecução das adaptações e submeterá ao juízo da Sé Apostólica a formulação amadurecida do assunto.[158]
396. Antes, porém, de se chegar às novas adaptações, principalmente às mais profundas, há-de cuidar-se com diligência da promoção sapiente e ordenada da devida instrução do clero e fiéis, hão-de pôr-se em prática as faculdades já previstas e aplicar-se-ão plenamente as normas pastorais correspondentes ao espírito da celebração.
397. Observe-se também o princípio segundo o qual cada Igreja particular deve estar de acordo com a Igreja universal, não só na doutrina da fé e nos sinais sacramentais, mas também nos usos universalmente recebidos de uma ininterrupta tradição apostólica, a qual deve observar-se, não só para evitar os erros, mas também para transmitir a integridade da fé, porque a “norma da oração” (lex orandi) da Igreja corresponde à sua “norma da fé” (lex credendi).[159]
O Rito romano constitui uma parte notável e preciosa do tesouro litúrgico e do património da Igreja católica, cujas riquezas concorrem para o bem de toda a Igreja, pelo que perdê-las seria prejudicá-la gravemente. (E não precisa de “enriquecimento simbólico com a inserção de elementos sincréticos de outras religiões).
Esse Rito, no decurso dos séculos, não só conservou usos litúrgicos originários da cidade de Roma, mas também integrou em si, de modo profundo, orgânico e harmónico, outros elementos derivados dos costumes e do engenho de diversos povos e de várias Igrejas particulares, tanto do Ocidente como do Oriente, adquirindo, assim, um certo carácter supra-regional. No nosso tempo, a identidade e a expressão unitária deste Rito encontra-se nas edições típicas dos livros litúrgicos promulgadas por autoridade dos Sumos Pontífices e nos livros litúrgicos que lhes correspondem, aprovados pelas Conferências Episcopais para os seus territórios e confirmados pela Sé Apostólica.[160]
398. A norma estabelecida pelo II Concílio do Vaticano, segundo a qual as inovações na reforma litúrgica só se devem fazer se o exigir uma verdadeira e certa utilidade da Igreja, e procurando que as novas formas como que cresçam organicamente das que já existem,[161] também deve aplicar-se à inculturação do Rito romano.[162] Além disso a inculturação precisa de bastante tempo, para não contaminar repentina e incautamente a autêntica tradição litúrgica.
[156] II Conc. do Vaticano, Const. sobre a sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium, 37-40.
[157] Cf. Congregação do Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, Instr. Varietates legitimae, de 25 de Janeiro 1994, 54.62-69: AAS 87 (1995) 308-309, 311-313.
[158] Cf. Ibidem, 66-68: AAS 87 (1995) 313.
[159] Cf. Ibidem, 26-27: AAS 87 (1995) 298-299.
[160] Cf. João Paulo II, Carta Ap. Vicesimus quintus annus, 4 de Dezembro 1988, 16: AAS 81 (1989) 912; Congregação do Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, Instr. Varietates legitimae, de 25 de Janeiro 1994, 2, 36: AAS 87 (1995) 288, 302.
[161] Cf. II Conc. do Vaticano, Const. sobre a sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium, 23.
[162] Cf. Congregação do Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, Instr. Varietates legitimae, de 25 de Janeiro 1994, 46: AAS 87 (1995) 306.
Vai no mesmo sentido a Instrução Varietates Legitimae (1994), que cito na versão em espanhol [meus comentários em vermelho]
52. La constitución Sacrosanctum concilium tenía presente una inculturación del rito romano al decretar las Normas para adaptar la liturgia a la mentalidad y tradiciones de los pueblos, al prever medidas de adaptación en los mismos libros litúrgicos (cf. nn. 53-61), y al permitir en ciertos casos, especialmente en los países de misión, adaptaciones más profundas (cf. nn. 63-64).
(…)
63. A pesar de las medidas de adaptación previstas ya en los libros litúrgicos, puede suceder «que en ciertos lugares y circunstancias urja una adaptación más profunda de la liturgia, lo que implica mayores dificultades» (138). No se trata en tales casos de adaptación dentro del marco previsto en las Institutiones generales y Praenotanda de los libros litúrgicos.
Esto supone que una Conferencia episcopal ha empleado ante todo los recursos ofrecidos por los libros litúrgicos, ha evaluado el funcionamiento de las adaptaciones ya realizadas y ha procedido, donde ha sido preciso a su revisión, antes de tomar la iniciativa de una adaptación más profunda.
[ou seja, para a conferência episcopal submeter à Santa Sé uma proposta de adaptações mais radicais, deve ter esgotado todas as possibilidades de adaptação oferecidas pelos livros litúrgicos, deve ter avaliado as adaptações já introduzidas e até talvez revisado estas adaptações antes de prosseguir com adaptações mais profundas.]
La utilidad o la necesidad de esa adaptación puede manifestarse respecto a alguno de los puntos enumerados anteriormente (cf. nn. 53-61) sin que afecte a los demás. Adaptaciones de esta especie no pretenden una transformación del rito romano, sino que se sitúan dentro del mismo.
64. En este caso, uno o varios obispos pueden exponer a sus hermanos en el episcopado de su Conferencia las dificultades que subsisten para la participación de sus fieles, y examinar con ellos la oportunidad de introducir adaptaciones más profundas si es que el bien de las almas lo exige verdaderamente (139).
Después, corresponde a la Conferencia episcopal proponer a la Sede apostólica, según el procedimiento establecido más abajo, las modificaciones que desea adoptar (140).
[a conferência episcopal deve propor à Sé Apostólica as modificações que deseja adotar seguindo o procedimento determinado na mesma instrução Varietates Legitimae, n°s 65 a 69, que estabelece todos os passos para a proposta de inculturação, com a palavra final da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos]
La Congregación para el culto divino y la disciplina de los sacramentos se declara dispuesta a aceptar las proposiciones de las Conferencias episcopales, a examinarlas teniendo en cuenta el bien de las Iglesias locales interesadas y el bien común de toda la Iglesia, y a acompañar el proceso de inculturación en donde sea útil o necesario, según los principios expuestos en esta Instrucción (cf. nn. 33-51), con un espíritu de colaboración confiada y de responsabilidad compartida.
O cuidado da Santa Sé com o rito Romano é tamanho, que até as menores adaptações devem passar pela Santa Sé, como se pode ver na IGMR. Cabe à Conferência Episcopal propor a adaptação, não implementá-la autonomamente.
Portanto, a não ser que a CNBB tenha recebido alguma espécie de delegação de poderes para fazê-lo, o que nosso anônimo também não esclareceu, ela não tem poderes para instituir e promover de forma autônoma as “Missas Afro”, e, se o fizesse, estaria usurpando a competência da Santa Sé.
Por último e não menos importante, gostaria de ressaltar que para quem cultiva o verdadeiro espírito litúrgico, uma Missa bem celebrada conforme as normas jamais será uma repetição morta de fórmulas e regras, uma vez que é Nosso Senhor vivo e presente no altar, doando-se em sacrifício – um sacrifício perfeito.
Cito o Papa Bento XVI, em sua visita ad limina aos bispos do Brasil (grifos meus)
Uma menor atenção que por vezes é prestada ao culto do Santíssimo Sacramento é indício e causa de escurecimento do sentido cristão do mistério, como sucede quando na Santa Missa já não aparece como proeminente e operante Jesus, mas uma comunidade atarefada com muitas coisas em vez de estar recolhida e deixar-se atrair para o Único necessário: o seu Senhor. (…) Se na liturgia não emergisse a figura de Cristo, que está no seu princípio e está realmente presente para a tornar válida, já não teríamos a liturgia cristã, toda dependente do Senhor e toda suspensa da sua presença criadora.
Como estão distantes de tudo isto quantos, em nome da inculturação, decaem no sincretismo introduzindo ritos tomados de outras religiões ou particularismos culturais na celebração da Santa Missa (cf. Redemptionis Sacramentum, 79)! O mistério eucarístico é um «dom demasiado grande – escrevia o meu venerável predecessor o Papa João Paulo II – para suportar ambigüidades e reduções», particularmente quando, «despojado do seu valor sacrificial, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa» (Enc. Ecclesia de Eucharistia, 10). Subjacente a várias das motivações aduzidas, está uma mentalidade incapaz de aceitar a possibilidade duma real intervenção divina neste mundo em socorro do homem. Este, porém, «descobre-se incapaz de repelir por si mesmo as arremetidas do inimigo: cada um sente-se como que preso com cadeias» (Const. Gaudium et spes, 13). A confissão duma intervenção redentora de Deus para mudar esta situação de alienação e de pecado é vista por quantos partilham a visão deísta como integralista, e o mesmo juízo é feito a propósito de um sinal sacramental que torna presente o sacrifício redentor. Mais aceitável, a seus olhos, seria a celebração de um sinal que corresponda a um vago sentimento de comunidade.
Mas o culto não pode nascer da nossa fantasia; seria um grito na escuridão ou uma simples auto-afirmação. A verdadeira liturgia supõe que Deus responda e nos mostre como podemos adorá-Lo. «A Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na Eucaristia, precisamente porque o próprio Cristo Se deu primeiro a ela no sacrifício da Cruz» (Exort. ap.Sacramentum caritatis, 14). A Igreja vive desta presença e tem como razão de ser e existir ampliar esta presença ao mundo inteiro.
Desculpem se esse pseudo-artigo ficou muito longo, mas estas considerações eram necessárias . Não sou “douta”, muito menos em liturgia; o Sr. Anônimo não precisa, no entanto, confiar em mim, mas sim nos documentos magisteriais e no Papa, cujas palavras trouxe. Espero ter contribuído para a compreensão do zelo com que nossa Igreja preserva o rito Romano de contaminações – como as famigeradas “Missas Afro”.