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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Liturgia e o “protestantismo” tradicionalista


Andrea Tornielli
Vaticanista do Il Giornale,
Trad. e Adapt.  Cleiton Robson.

Caros amigos, ao renovar meus votos de um Feliz Natal, digo que no Giornale de ontem (24/12/10), publiquei uma extensa entrevista com o Prefeito da Congregação para o Culto Divino, o Cardeal Antonio Cañizares Llovera . Aqui está o texto completo. O Cardeal - depois de ter denunciado a pressa com que foi feita a reforma pós-conciliar - explica o que a Congregação está fazendo para dar vida a um novo movimento litúrgico que faça recuperar a sacralidade ao rito de acordo com as instruções da Constituição Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II. Cañizares antecipou algumas das iniciativas do dicastério que resguardam a formação, a catequese, a pregação, a arte e a música sacra.

Li com interesse alguns comentários em outros blogs que já tomaram a entrevista de ontem (refiro-me a paparatzinger blogs e ao blog messainlatino) e gostaria de fazer aqui algumas observações sobre a liturgia, mas também, em geral, à atitude contra o Concílio Vaticano II, também no debate suscitado pelo livro O Concílio Vaticano II: Uma história jamais escrita (Lindau), publicada recentemente pelo historiador Roberto de Mattei.

Para começar eu digo que não gosto de usar o adjetivo “tradicionalista”, assim como não gosto daqueles que seguem o rito antigo (na minha opinião, equivocadamente, chamado de “a missa de sempre”, como se eu, que sigo o rito pós-conciliar, fosse a uma “missa de nunca”) seja definido como “modernista”.

Espanta-me, antes de tudo que, frente aos gestos de Bento XVI, voltados a recuperar a sacralidade do rito católico, houve grandes concessões importantes, dentre elas o Motu Proprio Summorum Pontificum que, ao invés de favorecer a reconciliação defendida pelo Papa, segundo aquela hermenêutica “da reforma, da renovação na continuidade” (não vamos esquecer: não só “na continuidade”, mas também “da reforma”), vê-se, às vezes, que são atitudes consolidadas pela rigidez. Caros amigos, eu não posso suportar a banalização da liturgia, a criatividade que reduz o rito à obra de nossas mãos; a ausência do silêncio; a música que não tem nada a ver com a Missa, etc. etc.

Mas devo acrescentar: temos honestamente que admitir que esta, na verdade, não é a regra em todos os lugares. É certo que, em relação há alguns anos ou décadas, os abusos diminuíram drasticamente; e existem diferenças consideráveis de país para país. É por isso que estou surpreso, pois, no fundo, as palavras do Cardeal Cañizares, intérprete sincero e verdadeiro de Bento XVI, são consideradas como expressões de fraqueza, pelo fato de que ele - a pedido do Papa - está trabalhando para suscitar um movimento litúrgico novo e forte.

Esclareçamos tudo: muitos (ou alguns, ou poucos, julguem vocês mesmos) tradicionalistas não gostam da hermenêutica da continuidade de Bento XVI, porque, no fundo, acreditam que o Concílio deveria ter sido abolido. Eles acreditam que a reforma litúrgica deveria ser abolida, como um todo. Eles chegam a dizer que Roma deve reconciliar-se com a Tradição. Mas qual Tradição? Aquela fixada por eles. A Tradição está sempre vivendo, e assim como o cristianismo, é um evento que constitutivamente entra na história - que Deus se fez carne, morreu na cruz por nossos pecados e ressuscita, abrindo as portas do Paraíso e prometendo um cêntuplo já aqui. A Igreja se atualiza, vive os desafios do tempo. Procura apresentar, de modo adequado, as verdades de sempre.

Temo que certo tradicionalismo possa deslizar para o seu exato oposto, o protestantismo. Ou melhor, o galicanismo. Quem dá o direito a este ou aquele tradicionalista de dizer: esta é a Tradição, Roma está errando? Quem dá a autoridade para decidir? O tradicionalismo não é o Magistério. Quem dá o direito de, às vezes, lançar ao mar, com escárnio e desprezo, o Concílio Vaticano II? Talvez o apelo à autoridade do arcebispo Marcel Lefebvre (que a sua alma descanse em paz), agora apresentado em uma hagiografia, como um santo da Igreja?!

Quem permite a muitos tradicionalistas – baseando-se no fato de que o Vaticano II não proclamou dogmas novos – de declarar o Concílio como “pastoral” e, portanto, irrelevante e não segui-lo? Os 95% do Magistério não é dogmático, mas ordinário. Porém, o católico é obrigado a segui-lo. E então - digo isto sem intenção polêmica - como se pode realmente acreditar que o Papa legitimamente eleito, a quem Jesus assegurou o poder das Chaves e da assistência especial do Espírito Santo, com todos os bispos que votaram quase por unanimidade os documentos do Vaticano II (Lefebvre incluído), juntos em Concílio, possam ter errado?

Estar com Pedro e pelos bispos em comunhão com ele significa ser católico. Caso contrário, eu poderia dizer que considero Pio X um modernista (quantas reformas ele fez, e se eu não gosto nem as considero inadequadas aos tempos e que não estão em consonância com a doutrina litúrgica de Gregório XVI e Leão Magno?), e que quero me firmar no Vaticano I e em Pio IX ... Outro pode dizer que não aceita o Vaticano I e o dogma da infalibilidade papal (que é um inegável desenvolvimento da Tradição, e que não é aceito pelos ortodoxos). Outro pode dizer que o único ponto firme é o Concílio de Trento, enquanto outro ainda pode tentar provar que o rito moçárabe celebrado em Toledo não é católico...

Este é o “protestantismo” tradicionalista, porque se as posições de Dom Lefebvre, deste ou daquele teólogo, algumas teorias do leigo brasileiro Plínio Corrêa de Oliveira (que são objetos, dentre os muitos que se voltam para o seu pensamento, com diversas interpretações), ou as opiniões de qualquer respeitabilíssimo bispo ultra-conservador sejam enfatizadas e terminem por se tornarem o único critério para julgar a Sé Apostólica e por afirmar, em substância, as suas próprias opiniões sobre a Tradição e a “Missa de sempre”, na minha humilde opinião, há algo errado. É, na verdade, uma oposição, mas perfeitamente semelhante à de um certo progressismo, que apresenta o Concílio como um elemento de ruptura total com o passado. Isto é uma leitura antitética à de Bento XVI.

E então, permitam-me dizer que não é possível lançar apelos contínuos ao Papa para explicar, para esclarecer o Concílio; e depois fingir que não se leu e que não foi possível ver quando ele ou a Congregação para a Doutrina da Fé, ou outros departamentos da Cúria Romana o fizeram, dando a hermenêutica adequada com relação a certas distorções devidas não ao Concílio e seus textos, mas às opiniões do pós-Concílio. Isso aconteceu até com o discurso de Bento XVI à Cúria Romana em 2005 (onde o Papa admiravelmente abordou a questão da liberdade de religião, também se reflete na Mensagem para o Dia Mundial da Paz, em Janeiro de 2011), com a Dominus Iesus sobre a singularidade da salvação de Cristo, com o esclarecimento sobre o “subsiste in”.

A Igreja é maior do que as nossas opiniões, o Magistério do Papa deve ser seguido mesmo quando o Pontífice não fala “ex cathedra”, o que acontece na grande maioria das vezes. O católico sabe que a Igreja Católica não é obra de nossas mãos, sabemos que fomos chamados por Alguém. Ele sabe que Jesus, a verdadeira rocha sobre a qual a Igreja estabeleceu a autoridade do seu Vigário – um pobre vigário de Cristo, como dito em palavras inesquecível João Paulo I – é tão frágil como todos, mas especialmente assistido pelo Espírito Santo.

Se olhássemos assim para o Papa, talvez poderíamos usar outras palavras para descrever o que ele faz e o que nos pede. Talvez estaríamos prontos para debatermos, porque o que nos poupa não é a nossa ideia de Tradição, mas o estarmos unidos a Cristo na sua Igreja, sob a guia do Seu Vigário e dos bispos em comunhão com ele. Para isso, dizia o Cardeal Giuseppe Siri, “os documentos do Concílio devem ser lidos de joelhos”.

Permitam-me uma palavra final sobre Dom Marcel Lefebvre, hoje apresentado por alguns como um santo, um herói, um combatente do bom combate pela verdade contra o modernismo dos Pontífices... Não o julgo e espero realmente que esteja no Céu, apesar da excomunhão. Mas um católico não pode apresentá-lo como um exemplo de santidade. Se Lefebvre era um santo, em 1988, tinha dito ao Senhor: “Meu Deus, eu fiz tudo que podia para salvar a autêntica Tradição que eu considero em perigo, e lutar por aquilo que acredito ser uma separação assustadora da verdadeira liturgia Católica. Agora estou diante de um dilema. Desobedecendo ao Papa para garantir a continuidade da Sociedade de São Pio X, consagrar novos bispos, ou aceitar o convite e deixar perder-se....” Aqui é um santo (como o Padre Pio, o santo de Pietrelcina) nunca teria desobedecido o Papa nunca teria quebrado a unidade da Igreja. Ele disse a Deus: “Eu confio em Ti. Se Tu quiseres continuar com este trabalho, agora tu tens que ir em frente, porque eu tenho feito tudo que era humanamente possível, mas agora eu não posso desobedecer o Seu Vigário”.

Ao dizer Feliz Natal novamente, gostaria de acrescentar que não restam dúvidas (que não necessariamente serão), e que partilho da opinião de Cañizares sobre a reforma pós-conciliar, que, creio, deve ser escrita a palavra final para os abusos litúrgicos, bem como para o problema da ausência de autoridade do episcopado, uma das principais causas do fracasso para corrigir os abusos. Não estou, em suma, pintando uma realidade rósea, porque não o é.

Mas devo expressar aqui mais uma vez, a falta de caridade e, às vezes, até mesmo desprezo que eu li em algumas reações. Há um debate que revela a existência de uma guerra entre cristãos que se devoram uns aos outros. E vou dizer o porquê de ter apenas me prendido aos chamados “tradicionalistas” e não aos chamados “modernistas”, que são muito mais. Bem, vejam, diante do exemplo de Bento XVI, os gestos de reconciliação, que pôs em prática frente ao mundo tradicionalista, seria de se esperar que, a partir deste próprio mundo, viesse o primeiro e principal apoio para aquele movimento litúrgico que o Papa (e não singularmente Ratzinger ou o “Papa” entre aspas, como às vezes eu vejo isso definido nos delírios sedevacantistas) acredita ser essencial para a Igreja hoje.

O Magistério da Igreja - disse o então arcebispo de Munique da Baviera, Joseph Ratzinger - defendeu a fé do povo simples, daqueles que não escrevem editoriais nos jornais, que não têm cátedras universitárias, que não publicam obras teológicas ou livros de sucesso, que não vão à TV. E na fé dos católicos simples sempre se soube que Ubi Petrus ibi Ecclesia.


Clique AQUI para ler o texto original, em italiano.
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