Observância das normas litúrgicas e “ars celebrandi”
(dos Estudos do Oficio das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontifice)
Original em: http://www.vatican.va/news_services/liturgy/details/ns_lit_doc_20100729_osservanza_po.html
1. A situação no pós-Concílio
O Concílio Vaticano II ordenou uma reforma geral na sagrada liturgia [1]. Esta foi efetuada, após o encerramento do Concílio, por uma comissão chamada abreviadamente de Consilium [2]. É sabido que a reforma litúrgica foi desde o início objeto de críticas, às vezes radicais, como de exaltações, em certos casos excessivas. Não é nossa intenção nos deter neste problema. Podemos dizer em contrapartida que se está geralmente de acordo em observar um forte aumento dos abusos no campo celebrativo depois do Concílio. Também o Magistério recente tomou nota da situação e em muitos casos chamou à estrita observância das normas e das indicações litúrgicas. Por outro lado, as leis litúrgicas estabelecidas para a forma ordinária (ou de Paulo VI) — que, exceções à parte, celebra-se sempre e em todas partes na Igreja de hoje — são muito mais "abertas" em relação ao passado. Estas permitem muitas exceções e diversas aplicações, e preveem também múltiplos formulários para os diversos ritos (a pluriformidade inclusive aumenta na passagem da editio typica latina às versões nacionais). Apesar disso, um grande número de sacerdotes considera que tem de ampliar ulteriormente o espaço deixado à "criatividade", que se expressa sobretudo com a frequente mudança de palavras ou de frases inteiras em relação às fixadas nos livros litúrgicos, com a inserção de "ritos" novos e frequentemente estranhos completamente à tradição litúrgica e teológica da Igreja e inclusive com o uso de vestimentas, utensílios sagrados e adornos nem sempre adequados e, em alguns casos, caindo inclusive no ridículo. O liturgista Cesare Giraudo resumiu a situação com estas palavras:
"Se antes [da reforma litúrgica] havia fixação, esclerose de formas, inaturalidade, que faziam a liturgia de então um ‘liturgia de ferro', hoje, há naturalidade e espontaneidade, sem dúvida sinceras, mas frequentemente confusas, mal entendidas, que fazem — ou ao menos correm o risco de fazer — da liturgia uma "liturgia de borracha", incerta, escorregadiça, que às vezes se expressa em uma ostentosa liberação de toda normativa escrita. [...] Esta espontaneidade mal entendida, que se identifica de fato com a improvisação, a falta de seriedade, a superficialidade, o permissivismo, é o novo ‘critério' que fascina inumeráveis agentes pastorais, sacerdotes e leigos.
[...] Por não falar também daqueles sacerdotes que, às vezes e em alguns lugares, arrogam-se o direito de utilizar pregações eucarísticas selvagens, ou de compor aqui ou ali seu texto ou partes dele" [3].
O Papa João Paulo II, na encíclica Ecclesia de Eucharistia, manifestou seu desgosto pelos abusos litúrgicos que acontecem frequentemente, particularmente na celebração da Santa Missa, já que a "Eucaristia é um dom demasiado grande para suportar ambiguidades e diminuições" [4]. Ele acrescentou:
"Temos a lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma litúrgica pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Uma certa reacção contra o «formalismo» levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem não obrigatórias as «formas» escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja e do seu magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes completamente impróprias. Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na celebração eucarística. Constituem uma expressão concreta da autêntica eclesialidade da Eucaristia; tal é o seu sentido mais profundo. A liturgia nunca é propriedade privada de alguém, nem do celebrante, nem da comunidade onde são celebrados os santos mistérios." [5].
2. Causas e efeitos do fenômeno
O fenômeno da "desobediência litúrgica" estendeu-se de tal forma, por número e em certos casos também por gravidade, que se formou em muitos uma mentalidade pela qual na liturgia, salvando as palavras da consagração eucarística, se poderiam dar todas as modificações consideradas "pastoralmente" oportunas pelo sacerdote ou pela comunidade. Esta situação induziu o próprio João Paulo II a pedir à Congregação para o Culto Divino que preparasse uma Instrução disciplinar sobre a Celebração da Eucaristia, publicada com o título de Redemptionis Sacramentum, a 25 de março de 2004. Na citação antes reproduzida da Ecclesia de Eucharistia, indicava-se na reação ao formalismo uma das causas da "desobediência litúrgica" de nosso tempo. A Redemptionis Sacramentum assinala outras causas, entre elas um falso conceito de liberdade [6] e a ignorância. Esta última em particular se refere não só ao conhecimento das normas, mas também a uma compreensão deficiente do valor histórico e teológico de muitos textos eucológicos e ritos: "Finalmente, os abusos se fundamentam com frequência na ignorância, já que quase sempre se rejeita aquilo que não se compreende seu sentido mais profundo e sua Antiguidade" [7].
Introduzindo o tema da fidelidade às normas em uma compreensão teológica e histórica, ademais de no contexto da eclesiologia de comunhão, a Instrução afirma: "O Mistério da Eucaristia é demasiado grande «para que alguém possa permitir tratá-lo ao seu arbítrio pessoal, pois não respeitaria nem seu caráter sagrado, nem sua dimensão universal» [...] Os atos arbitrários não beneficiam a verdadeira renovação e sim lesionam o verdadeiro direito dos fiéis à ação litúrgica, à expressão da vida da Igreja, de acordo com sua tradição e disciplina. Além disso, introduzem na mesma celebração da Eucaristia elementos de discórdia e de deformação, quando ela tem, por sua própria natureza e de forma eminente, de significar e de realizar admiravelmente a Comunhão com a vida divina e a unidade do povo de Deus. Estes atos arbitrários causam incerteza na doutrina, dúvida e escândalo para o povo de Deus e, quase inevitavelmente, uma violenta repugnância que confunde e aflige com força a muitos fiéis em nossos tempos, em que frequentemente a vida cristã sofre o ambiente, muito difícil, da «secularização».
Por outra parte, todos os fiéis cristãos gozam do direito de celebrar uma liturgia verdadeira, especialmente a celebração da santa Missa, que seja tal como a Igreja tem querido e estabelecido, como está prescrito nos livros litúrgicos e nas outras leis e normas. Além disso, o povo católico tem direito a que se celebre por ele, de forma íntegra, o santo Sacrifício da Missa, conforme toda a essência do Magistério da Igreja. Finalmente, a comunidade católica tem direito a que de tal modo se realize para ela a celebração da Santíssima Eucaristia, que apareça verdadeiramente como sacramento de unidade, excluindo absolutamente todos os defeitos e gestos que possam manifestar divisões e facções na Igreja." [8]
Particularmente significativo neste texto é o chamado ao direito dos fiéis de terem a liturgia celebrada segundo as normas universais da Igreja, além de sublinhar o fato de que as transformações e modificações da liturgia — ainda que se façam por motivos "pastorais" — não têm na realidade um efeito positivo neste campo; ao contrário, confundem, turbam, cansam e podem inclusive fazer os fiéis se afastarem da prática religiosa.
3. O ars celebrandi
Eis aqui os motivos pelos quais o Magistério nas últimas quatro décadas recordou várias vezes aos sacerdotes a importância do ars celebrandi, o qual — se bem não consiste apenas na perfeita execução dos ritos de acordo com os livros, mas também e sobretudo no espírito de fé e adoração com os que estes se celebram — não se pode no entanto realizar se se afasta das normas fixadas para a celebração [9]. Assim o expressa por exemplo o Santo Padre Bento XVI: "O primeiro modo de favorecer a participação do povo de Deus no rito sagrado é a condigna celebração do mesmo; a arte da celebração é a melhor condição para a participação ativa (actuosa participatio). Aquela resulta da fiel obediência às normas litúrgicas na sua integridade, pois é precisamente este modo de celebrar que, há dois mil anos, garante a vida de fé de todos os crentes, chamados a viver a celebração enquanto povo de Deus, sacerdócio real, nação santa"(cf. 1 Pd 2,4-5.9)" [10].
Recordando estes aspectos, não se deve cair no erro de esquecer os frutos positivos produzidos pelo movimento de renovação litúrgica. O problema assinalado, contudo, subsiste e é importante que a solução ao mesmo parta dos sacerdotes, os quais devem se empenhar antes de tudo em conhecer de maneira aprofundada os livros litúrgicos, e também a pôr fielmente em prática suas prescrições. Só o conhecimento das leis litúrgicas e o desejo de se ater estritamente a elas impedirá ulteriores abusos e "inovações" arbitrárias que, se no momento podem talvez emocionar os presentes, na realidade acabam logo por cansar e defraudar. Salvas as melhores intenções de quem as comete, depois de quarenta anos de experiência na questão, a "desobediência litúrgica" não constrói de fato comunidades cristãs melhores, mas, ao contrário, põe em risco a solidez de sua fé e de sua pertença à unidade da Igreja Católica. Não se pode utilizar o caráter mais "aberto" das novas normas litúrgicas como pretexto para desnaturalizar o culto público da Igreja:
"As novas normas simplificaram muito as fórmulas, os gestos, os atos litúrgicos [...] Mas neste campo não se deve ir além do estabelecido: de fato, procedendo assim, se despojaria a liturgia dos sinais sagrados e de sua beleza, que são necessários, para que se realize verdadeiramente na comunidade cristã o mistério da salvação e seja compreendido também, sob o véu das realidades visíveis, através de uma catequese apropriada. A reforma litúrgica de fato não é sinônimo de dessacralização, nem quer ser motivo para esse fenômeno que chamam de a secularização do mundo. É necessário por isso conservar nos ritos dignidade, seriedade, sacralidade" [11].
Entre as graças que esperamos poder obter da celebração do Ano Sacerdotal está portanto também a de uma verdadeira renovação litúrgica no seio da Igreja, para que a sagrada liturgia seja compreendida e vivida pelo que esta é na realidade: o culto público e integral do Corpo Místico de Cristo, Cabeça e membros, culto de adoração que glorifica a Deus e santifica os homens [12].
__________________________________
Notas
[1] Cf. Concílio Vaticano II , Sacrosanctum Concilium, n. 21.
[2] Abreviação de Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia.
[3] C. Giraudo, "La costituzione 'Sacrosanctum Concilium': il primo grande dono del Vaticano II", en La Civiltà Cattolica (2003/IV), pp. 532; 531.
[4] João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, n. 10.
[5] Ibid., n. 52. Cf. também Concílio Vaticano II , Sacrosanctum Concilium, n. 28.
[6] "Não é estranho que os abusos tenham sua origem em um falso conceito de liberdade. Posto que Deus nos tem concedido, em Cristo, não uma falsa liberdade para fazer o que queremos, mas sim a liberdade para que possamos realizar o que é digno e justo": Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Redemptionis Sacramentum, n. 7.
[7] Ibid., n. 9.
[8] Ibid., nn. 11-12.
[9] Sagrada Congregação dos Ritos, Eucharisticum Mysterium, n. 20: "Para favorecer o correto desenvolvimento da celebração sagrada e a participação ativa dos fiéis, os ministros não devem apenas limitar-se a realizar seu serviço com exatidão, segundo as leis litúrgicas, mas devem comportar-se de forma que inculquem, por meio deste, o sentido das coisas sagradas"
[10] Bento XVI, Sacramentum Caritatis, n. 38. Veja-se o n. 40, que desenvolve adequadamente o conceito.
[11] Sagrada Congregação para o Culto Divino, Liturgicae instaurationes, n. 1. O texto continua: "A eficácia das ações litúrgicas não está na busca contínua de novidades rituais, ou de simplicações ulteriores, mas no aprofundamento da palavra de Deus e do mistério celebrado, cuja presença está assegurada pela observância dos ritos da Igreja e não dos impostos pelo gosto pessoal de cada sacerdote. Tenha-se presente, ademais, que a imposição de reconstruções pessoais dos ritos sagrados por parte do sacerdote ofende a dignidade dos fiéis e abre caminho para o individualismo e o personalismo na celebração de ações que diretamente pertencem a toda Igreja".
[12] Cf. Pio XII, Mediator Dei, I, 1; Concílio Vaticano II , Sacrosanctum Concilium, n. 7.