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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Por que a música sacra está em crise?

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O L’Osservatore Romano publicou o seguinte artigo, que passamos a traduzir:

O padre Uwe Michal Lang, oficial da Congregação para o Culto Divino e consultor do Oficio para as Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice, pronunciou uma conferencia na Academia Urbana de Artes, no marco do seminário “As razões da arte”. L’Osservatore Romano publicou amplas passagens de tal relação, cuja a continuação oferecemos em língua portuguesa.

Entre as muitas contribuições clarividentes e agudas de Joseph Ratzinger – Bento XVI sobre a música sacra, há um encontro particularmente interessante e que quero tomar como ponto de partida para minhas reflexões: a conferência: “Problemas teológicos da música sacra”, pronunciado no Departamento de Música Sacra do Conservatório Estatal de Música de Stuttgart em janeiro de 1977 e logo publicada também em outras línguas. Em italiano saiu pela primeira vez há alguns meses o livro "Teologia da Liturgia", o primeiro volume publicado dos dezesseis da ópera omnia de Joseph Ratzinger (Città Del Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 2010, páginas 858, 55 euros).

Nesta conferência, o então Cardeal Ratzinger identificava as causas da crise contemporânea da música sacra tanto a crise geral da Igreja desenrolada depois do Concilio Vaticano II, como a crise das artes no mundo moderno, que afetou também a música. Joseph Ratzinger estava interessado, sobretudo, nos motivos teológicos da crise da música sacra; para que "esta terminou no meio de duas grandes pedras de moinho teológicas, mas bem contrapostos que, não obstante, ajudam a desgastá-la."

Por um lado existe “o funcionalismo puritano de uma liturgia entendida no sentido puramente pragmático: o evento litúrgico deve ser, como se diz, liberado do caráter culto e reduzido ao seu simples ponto de partida, um banquete comunitário”. Esta atitude parte da leitura equivocada do principio da participação ativa (participatio actuosa), introduzido pelo Papa São Pio X e promovido pela Constituição do Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia. Sempre se entende a participação ativa como “uma atividade igual na liturgia de todos os presentes”, que já não deixa espaço para a música que tem um teor artístico mais alto e que é cantada por um coral e compreende também o uso dos instrumentos musicais clássicos. Nesta visão só é licito o canto da assembleia “que, por sua vez, não deve ser julgada com base em seu valor artístico senão unicamente com base em sua funcionalidade, quer dizer, com base na capacidade de criar e ativar uma comunidade”.

Por outro lado, está o que Joseph Ratzinger chamou de “funcionalismo da adaptação”, que levou a uma aparição de novas formas de corais e orquestras que executam a música “religiosa” inspirada no jazz ou no pop contemporâneo. O atual Papa observa que os “novos conjuntos (...) resultavam menos elitistas que os antigos corais das igrejas, porém não eram submetidos à mesma critica”. Ambas atitudes teológicas têm o mesmo efeito: o repertório tradicional da música sacra, desde o canto gregoriano até as composições polifônicas do século XX, é julgado impróprio para a liturgia e próprio somente para uma sala de concertos, donde é cuidado e valorado como um objeto de museu ou, talvez, transformado em uma espécie de liturgia “secular”.

Certamente, se pode sustentar que há algum precedente na Igreja primitiva para a atitude de “funcionalismo puritano” em relação à música na liturgia. Já desde os começos, o canto dos salmos e como desenvolvimento sucessivo, os hinos e cânticos, tinha um posto natural no culto cristão. De todos os modos, não se continuava a prática musical do Templo de Jerusalém com seu caráter festivo e o uso de instrumentos, descrito em vários salmos. O lugar da música cristã corresponde melhor ao de uma música na sinagoga. Ao mesmo tempo, os primeiros cristãos estavam preocupados por distinguir claramente a musica de sua liturgia com a dos cultos pagãos. Uma conseqüência dessa distância tanto do culto do Templo como das cerimônias pagãs era a exclusão dos instrumentos da liturgia cristã, que se mantém, todavia, nas tradições ortodoxas e que foi expressado com uma forte corrente também no Ocidente latino, deixando de lado o rol privilegiado do órgão, que havia sido investido de um profundo significado teológico.

Joseph Ratzinger insiste no feito de que não se pode interpretar a suspensão dos instrumentos como um repúdio da dimensão “sagrada” e “culta” da música ou inclusive como um “passo até ao profano”. Ao contrário, esta expressa “uma sacralidade acentuada em forma pura”, que se reflete também nos comentários dos Padres da Igreja sobre o uso da música na liturgia. Muitos padres apresentam a liturgia como resultado de um processo de “espiritualização” desde o culto do Templo da Antiga Aliança com seus que concordam sacrifícios de animais até a logiké latreía (Romanos 12, 1), “um culto que concorda com Vervo eterno e com nossa razão”, um tema chave no pensamento do Pontífice. Uma música adequada a liturgia cristã necessita sofrer um processo de “espiritualização” que os Padres, segundo Joseph Ratzinger, haviam interpretado como uma “desmaterialização”: a música era admitida somente na medida em que servia ao movimento do sensível até o espiritual, e daqui resulta a descontinuidade com a música festiva do Templo e a exclusão dos instrumentos. O Atual Papa atribui a atitude austera dos Padres sobre a música, à força que o pensamento platônico tinha na teologia patrística, e identifica também os problemas inerentes a esta atitude enquanto “se acercava mais ou menos a iconoclastia”. Com efeito ele considera “a hipótese história da teologia” através da arte no sagrado, uma hipótese que reaparece a cada tempo no curso da história.

Uma particular relevância neste âmbito está constituído na encíclica Annus qui, escrita por um dos Papas mais sábios da idade moderna, Bento XIV, nascido Prospero Lorenzo Lambertini em 1675, Bispo de Ancona em 1727-1731, cargo que manteve também como Papa. Em 1728 foi nomeado cardeal e depois da morte de Clemente XII, no longo e controverso conclave de 1740, foi elevado à Sede de Pedro e elegeu como nome Bento XIV. Morreu em 1754.

O Papa Lambertini era um canonista e estudioso com amplo âmbito de interesses, entre os quais estava o culto divino. Seu magistério litúrgico pode colocar-se dentro do projeto continuo de reforma posto em marcha pelo Concilio de Trento. A encíclica Annus qui, havia sido escrita primeiro em italiano e logo traduzida ao latim, revela seu objetivo já em seu titulo completo: “Do culto e pureza das Igrejas; da regularização da celebração dos ritos e da Música Eclesiástica, Carta circular aos Bispos do Estado Eclesiástico por ocasião do próximo Ano Santo”.

Este titulo indica os argumentos principais da encíclica: o cuidado das igrejas, a ordem e a solenidade do culto celebrado nelas e de modo particular a música sacra. Note-se, aliás que a encíclica se dirige aos bispos do Estado Pontifício do próximo Ano Santo 1750. O Pontífice esperava em Roma um grande número de peregrinos que desejavam conseguir “o fruto espiritual das santas indulgências”. Bento XIV começa sua encíclica com um chamado a disciplina eclesiástica, animando a seu clero a fazer todo o que estava a seu poder para assegurar que os muitos visitantes na Cidade Eterna não voltassem às suas pátrias escandalizados pelo que haviam visto. Em efeito, Roma e todo o Estado Pontifício devem ser um exemplo de celebração litúrgica e de música sacra para todo o mundo católico. Sem dúvida, o Papa Lambertini era consciente dos limites de seu poder em tais questões, que dependiam de grande parte do patrocínio local tanto eclesiástico como secular. Sem dúvida estava decidido a manter um nível mais alto em seu próprio território.

As principais preocupações de Bento XIV sobre a polifonia sacra – em continuidade com os debates do Concilio de Trento e as declarações sucessivas de Papas e de sínodos locais – são a integridade e a inteligibilidade do texto litúrgico musicalizado. Em particular, quando se cantam as passagens polifônicas na Missa ou no Oficio Divino, devem conter os “próprios” que são partes integrantes da sagrada liturgia. Dada esta premissa, Bento XIV se refere a um decreto publicado por seu predecessor Inocêncio XII em 1692, que proibiu em geral o canto por este motivo. Nas Santas Missas solenes só se permitia além do canto do Glória e do Símbolo, o canto de Introito, o Gradual e o Ofertório. Nas Vésperas não se admitiu nenhuma troca, nem o mínimo sequer, nas antífonas que são ditas ao inicio e ao final de cada Salmo.

Ademais, a encíclica nota que se tem sido comum nos últimos tempos utilizar a música de caráter teatral no culto divino. O problema deste tipo de música é que se busca fazer que os ouvintes desfrutem da melodia, do ritmo, da qualidade das vozes, e assim sucessivamente, enquanto o significado das palavras passa a ser secundário. Em troca, afirma de modo inequívoco Bento XIV, isto não vale para a liturgia: “ Não deve ser assim, na troca, no canto Eclesiástico; Porém, neste se deve buscar o oposto”. Em outras palavras, a música sacra que merece esse nome deve servir sempre para um fim espiritual e teológico, e não somente estético. (Grifo nosso).

A encíclica continua logo com a questão do uso dos instrumentos na igreja. O Pontífice considera que esta questão é fundamental para distinguir a música sacra da música teatral. Em primeiro lugar, ele determina quais são os instrumentos que se podem tolerar (note-se a eleição das palavras: “dos instrumentos que podem ser tolerados nas Igrejas”). Bento XIV segue sua habitual metodologia e cita várias opiniões, em particular do primeiro Concilio Provincial de Milão, realizado por São Carlos Borromeu, que admitiu somente o órgão e excluiu todos os outros instrumentos.

Em segundo lugar, o Papa Lambertini, estabeleceu que os instrumentos permitidos devem soar somente para sustentar o canto da voz humana. Neste ponto, a linguagem do Pontífice volta muito decidida, quando declara: “Sem dúvidas, se os instrumentos continuam soando, e somente alguma vez se silenciam, como é costume hoje, para deixar tempo para que os ouvintes escutem as modulações harmônicas, as notas vibrantes dadas por tantas vozes, de forma vulgar chamadas trinos (uma referencia a João XXII, Docta Sanctorum Patrum); além disto, não fazem outra coisa que senão oprimir e sepultar as vozes do coro, e o sentido das palavras, então o uso dos instrumentos não alcança o fim querido, passa a ser inútil e mais ainda continua proibido”.

Em terceiro lugar, a respeito da música orquestral, Annus qui concede que poderá continuar aonde foi introduzida, de tal maneira que não seja e não leve, a causas de extensões, ao aborrecimento, ou a graves incômodos àqueles que estão no coro ou que servem no Altar, nas Vésperas e nas Missas.


Tradução para espanhol: La Buhardilla de Jerónimo
Tradução para o português: Salvem a Liturgia
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