Sua Beatitude, o Patriarca Gregório III de Antioquia e Todo o Oriente, de Alexandria e de Jerusalém, dos Católicos Greco-Melquitas, escreveu recentemente uma Carta sobre a Divina Liturgia. O New Liturgical Movement destacou alguns trechos, que foram traduzidos ao português por um leitor que quer se manter no anonimato, aluno brasileiro do Seminário Patriarcal Melquita de Sant’Ana, em Rabouè, Líbano.
Vale muito a pena a leitura, dado que toca não só em aspectos do rito bizantino, mas da própria teologia litúrgica católica como um todo, defendendo o ad Orientem ou versus Deum, e, com respeito, insinuando uma crítica, de passagem, a invenção “latina nova e recente” de se celebrar voltado para o povo. Os comentários entre os textos de Sua Beatitude são do NLM, também traduzidos pelo seminarista.
A Eucaristia é o Mistério dos Mistérios assim como a Páscoa é a Festa das Festas
7. A comunidade dos fiéis vive pela fé no mistério de Cristo. Os sacramentos são facetas, transfigurações ou aparências do mistério de Deus que tomou forma humana para dar à humanidade sua forma divina. Uma vez que a Eucaristia é o sacramento de todos sacramentos, ela coroa todas as várias orações e serviços litúrgicos.A Eucaristia é como a Páscoa: não está no rol comumdas festas, poisé seu pináculo, como nossas orações litúrgicas costumam dizer, a "festa das festas e a celebração das celebrações"(Oitavo Ode do Cânon Pascal).Em verdade, existe um elo essencial entre a Páscoa ea Eucaristia, pois esta é o lugar sacramental em que a Páscoa de Cristo é dilatadae se torna a Páscoa da Igreja, "a oferta da ressurreição", segundo São Gregório Nazianzeno, no quarto século, ou ainda "o ícone da economia do Salvador", de acordo com a expressão de Nicolau Cabasilas, no décimo quarto século.Por isso, espiritualidade eucarística da Liturgia condensa-se e encontra a espiritualidade do ano litúrgico nestas três linhas principais:i. O serviço da Palavra corresponde à Teofania (ao Natal, Batismo e à pregação do Evangelho)
ii. O serviço da anáfora corresponde à Páscoa (à Paixão, Crucificação e Ressurreição)
iii. O serviço da Comunhão corresponde à theosis [NT: divinização, santificação].
Em uma seção posterior, voltamos a esse tão familiar tema da sagrada liturgia como um antegozo do céu:
A liturgia como um antegozo do Reino14. Na Divina Liturgia, vivemos de uma maneira especial, conquanto ainda na terra, a liturgia celeste, na qual as miríades de anjosrendem glória e louvor à Divina Trindade, indivisívelem essência, dizendo: "Santo, santo, santo é o Senhor Deus dos Exércitos. O céu ea terra estão cheios de vossa glória "(cf. Isaías 6, 3). É a canção celestial que ouvimos ressoar no coração da igreja. E a ela nós adicionamos o hino terreno, em que Jerusalém saúda o Rei vindo para salvar: "Bendito o que vem em nome do Senhor; Hosana nas alturas" (Mateus 21, 9b).15. A Divina Liturgia translada-nos para o céu, pois nos abre uma dimensão escatológica e faz com que assim "tomamos parte em uma antecipação da liturgia celeste, que é celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual caminhamos como peregrinos" (Vaticano II Constituição sobre a Sagrada Liturgia, no. 8).16. A Divina Liturgia traz-nos também o próprio céu eproporciona a entradadele em nossa vida cotidiana. A Igreja ou comunidade eucarística é o lugar do novo nascimento através do Espírito Santo, o nascimento que o nosso Senhor Jesus Cristo entregou-nos no mistério de sua morte e ressurreição. É uma comunidade do Evangelho e da Eucaristia. É o Corpo de Cristo o lugar de Pentecostes, onde o Espírito Santo descee torna o pão eo vinho Corpo e Sangue de Cristo, assim como Ele torna os fiéis outros Cristos, e transforma toda a criação no templo vivo de Deus, em que, em suas câmaras, são repetidoscânticos e hinos de agradecimento e louvor, pois toda a criação "geme... esperandoredenção..." (Romanos 8,22-23)17. Então, a terra torna-se céu ea vida torna-se, na visão cristã, uma DivinaLiturgia universal, cósmica. É por essa razão que se diz que a Divina Liturgia é o céu na terra.
Sobreo ad orientem, ou a oração litúrgica voltada para o Oriente:
41. A Instrução ["Aplicação das prescrições litúrgicas do Código dos Cânones das Igrejas Orientais", Congregação para as Igrejas Orientais, 1996 - em inglês, aqui] menciona a importância de se orar voltado para o Oriente no No. 107, "Desde antigostempos que tem sido habitual na oração das Igrejas Orientais prostrar-se até o chão, voltando-se para o oriente; os próprios edifícios foram construídos de tal forma que o altar estivesse virado para o oriente. São João Damasceno explica o significado dessa tradição: "Não é por simplicidade, nem por acaso, que oramos voltados para as regiões do Oriente .... Uma vez que Deus é luz inteligível (1 João 1, 5), e nas Escrituras, Cristo é chamado o Sol da justiça (Malaquias 3, 20) e do Oriente (Zacarias 3,8 da LXX [NT: Septuaginta]), é necessário dedicar o Oriente a ele, a fim de render-lhe adoração. A Escritura diz: "Então o Senhor Deus plantou um jardim no Éden, no oriente, e colocou ali o homem que tinha formado" (Gênesis 2: 8). ... Em busca da pátria antiga e tendendo para ela, nós adoramos a Deus. ... Esperando por ele, nós nos prostramos em direção ao Oriente. É uma tradição tácita, decorrente dos Apóstolos" .Esta rica e fascinante interpretação também explica o motivo pelo qual o celebrante que preside a celebração litúrgica rezavoltado para o leste [NT: que nem sempre pode coincidir com o Oriente geográfico], assim como as pessoas participantes. Não é uma questão, como se costuma afirmar, de presidir a celebração com as costas viradas para o povo, mas sim de orientar as pessoas em peregrinação rumoao Reino, que é invocado em nossa oração até o retorno do Senhor.Tal prática, ameaçada em tantas Igrejas Orientais Católicas por uma influência latina nova e recente, é, portanto, de profundo valor e deveria ser preservada como verdadeiramente coerente com a espiritualidade oriental litúrgica.
Na fidelidade à tradição (permitindo, ao mesmo tempo, o desenvolvimento em continuidade com a mesma):
43. A Instrução destaca a importância da fidelidade à tradição. Lemos no. 109, "Não se pode negar que as Igrejas católicas orientais foram expostas, em tempos bastante recentes, à influência dos estilos de arte sacra completamente estrangeiros a sua herança, tanto na forma externa dos edifícios sagrados, quanto à organização do espaço interior e às imagens sacras. Ainda, das observações precedentes,emerge uma unidade harmoniosa entreas palavras, gestos, espaço e os objetos próprios e específicos de cada uma das liturgias orientais. A este aspecto, deve-se referir continuamenteplanejar de novos lugares de culto. E naturalmente exige-seda parte do clero um conhecimento aprofundado da sua própria tradição, alémde um plano de formação para os fiéis que seja constante, bem estabelecido e sistemático, para que eles sejam plenamente capacitados a perceber a riqueza dos sinais que lhes foram confiados. Fidelidade não implica fixação anacrônica, como a própria evolução da arte sacra -- até mesmo no Oriente --demonstra, mas sim uma desenvolvimento que seja totalmente coerente com o significado profundo e imutável atribuído pela celebração a tais sinais."
Finalmente, não posso deixar de partilhar o seguinte comentário, bastante franco, obviamente dirigido aos que reclamam sobre o comprimento da Divina Liturgia melquita:
70. Já tivemos de ouvir o bastante sobre uma Divina Liturgia longa ou curta, sobre um serviço longo ou curto. Esse comentário só ouvimos quando o assunto concerne à Liturgia ou ao serviço de oração. Nunca ouvimos falar de uma visita longa ou curta,deuma mais ou menos demoradasessão diante da televisão ou do computador, nem sobre a duração de um encontro com amigos numa praça, bar oudanceteria. Pensamos, pois, que tais observações sobreos serviços de oração são fúteis e sem valor. Tiremosdo pulso nossos relógios quando entrarmosna atmosfera de oração [sugestão do tradutor: façamos isso literalmente!]. Deixemos os nossos relógios e horários terrenos quando penetrarmos na casa de Deus. "É tempo para o Senhor agir". É assim que a Divina Liturgia começa[i]: completamente voltada para o Senhor. Para isso,nossas orações litúrgicas muitas vezes nos exortam: "Ponhamos de lado toda apreocupação temporal ...", "ninguém que está vinculado a preocupações terrenas e materiais ..." e, ainda, "elevemos nossos corações ao Senhor ... fiquemos atentos ". São Basílio, o Grande diz: "Não apresse-te durantetua oração. Não a abrevie para gerar tempo para os negócios mundanos. Não preste atenção aos rostos das pessoas, mas direciona totalmente teu coração para o Rei entronizado diante de ti,cercado de anjos que lhe tem atenção completamente dedicada”.
[i] NT: Refere-se à aclamação do diácono, que ele deve suceder com uma ordem dirigida ao sacerdote: “Abençoai, Mestre”. Seguindo essa indicação, o presbítero entoa a solene bênção, bem conhecida para alguns, que tão bem expressa onde estamos quando a Liturgia começa: “Bendito seja o Reino do Pai, do Filho e do Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos”.