O Prof. Carlos Ramalhete aceitou nosso convite para escrever sobre o assunto. Agradecemos a ele as interessantíssimas reflexões abaixo produzidas.
A Septuagésima
por Carlos Ramalhete
Quanto eu era criança e estudava de manhã, eu sempre ficava impressionado com um amigo e colega de colégio, que morava defronte à escola. Havia três sinais, três toques da campainha, antes do início da aula: no primeiro, sabíamos que ainda havia 15 minutos para o início da aula. No segundo, sabíamos que era a hora de entrar na sala. No terceiro, as portas se fechavam e quem não houvesse entrado teria que esperar o início da próxima aula.
Este meu amigo, aproveitando que da cama à carteira escolar havia menos de duzentos metros, havia desenvolvido o hábito de acordar com o primeiro sinal, vestir-se, descer correndo as escadas de casa, atravessar a rua, subir correndo as escadas da escola, e entrar na sala imediatamente antes das portas se fecharem. Sentava, provavelmente com gosto de cabo de guarda-chuva na boca, remelas pendendo das pálpebras inchadas e o raciocínio confuso de quem ainda não acordou direito. Mas sentava na carteira; estava lá na hora da aula.
Estes três sinais, que eram para nós um aviso gradual, eram para ele outra coisa: um susto, uma correria que para ele se justificava pelos minutinhos a mais de sono que ele conseguia ter.
A Igreja, na sua sabedoria, desenvolveu ao longo dos séculos uma prática de "gradualidade", de preparação cuidadosa de cada momento importante. Antes do Natal, temos o Advento; hoje, com a transformação do Natal em festa comercial, muitos têm a impressão de que o Tempo do Natal é imediatamente antes da festa, acabando nela. Na verdade, antes do natal é o Advento, tempo de preparação, com o Natal propriamente dito durando do dia da festa ao dia de Reis.
E antes da Páscoa, que é a festa por excelência, a festa em que celebramos a nossa Salvação, o presente imerecido e maravilhoso que Deus nos deu em Seu amor, temos a Quaresma.
O termo "Quaresma" é uma corruptela de "quadragésima" - 40a - por corresponder a quarenta dias de penitência, em que nos preparamos, tentando nos livrar das muitas armadlhas do mundo, para que sejamos menos indignos de receber tão magnífico presente, pela Páscoa. Na Quaresma não se canta o Aleluia, na Quaresma não se canta o Glória. É um tempo penitencial, um tempo de recolhimento e preparação.
A Quaresma, contudo, nem sempre começou tão subitamente; hoje, infelizmente, no calendário ordinário passamos diretamente do tempo comum ao auge do tempo penitencial. O resultado é que muitas vezes chegamos à Quaresma como meu amigo chegava à sala de aula: remelentos, olhos inchados, com gosto ruim na boca e sem entender muito bem o que está acontecendo.
No calendário clássico, que ao lado do atual - embora menos comum - continua sendo usado e orientando a vida litúrgica da forma extraordinária do Rito Romano, a Quaresma - quadragésima - é precedida de um tempo chamado Septuagésima.
Este tempo conta três domingos: o Domingo da Septuagésima propriamente dito, o Domingo da Sexagésima e o Domingo da Quinquagésima (também conhecido como Domingo de Carnaval). Como as semanas não têm dez dias, os nomes são simbólicos, lembrando-nos dos setenta anos de duração que teve o exílio babilônico do povo hebreu e contando o tempo para a chegada da Quaresma.
Como os três sinais que na escola avisavam que a aula iria começar em breve, dando-nos tempo para subir com vagar as escadas, lavar o rosto, preparar-se para aprender, o tempo da Septuagésima é um tempo em que podemos ir aos poucos nos aproximando do mistério quaresmal, podemos ir aos poucos restringindo os nossos mimos, a nossa "vida fácil", para que entremos na Quaresma já em pleno espírito penitencial.
Em muitas tradições cristãs, a abstinência começa antes da Quaresma; os gregos, por exemplo, que se abstém não apenas de carne, como nós (no Brasil há a possibilidade de trocar a abstinência de carne por outra penitência, mas é a abstinência a regra), mas também de ovos e derivados de leite, cortam a carne num domingo, os ovos e derivados mais tarde, etc., de modo a ir aos poucos acostumando-se ao rigor quaresmal. Entre nós, por muito tempo foi comum que os monges iniciassem sua abstinência na Sexagésima e os clérigos na Quinquagésima, com o laicato assumindo-a apenas na Quarta-Feira de Cinzas.
Outros sinais, contudo, permaneceram na forma clássica da liturgia. O Aleluia, por exemplo, não é mais cantado ou dito na forma extraordinária a partir do início da Septuagésima. Em muitos lugares havia até mesmo o hábito de fazer uma despedida solene - ou mesmo um enterro, com caixão e tudo! - do Aleluia; na Europa, havia hinos celebrando tristemente esta separação entre os habitantes da terra - indignos de cantá-lo - e os habitantes do Céu, que nunca param de fazê-lo. Antes do Evangelho, O Aleluia é substituído no Domingo da Septuagésima pelo De Profundiis: "das profundezas clamo a Vós, Senhor..."
Ao mesmo tempo vai-se o Glória, que só voltará, em júbilo, na Páscoa.
No entanto, a vida continua mais ou menos igual: ainda não há jejum, ainda não há abstinência, as imagens dos Santos ainda não foram cobertas por panos roxos (belo costume quaresmal ainda presente em muitos lugares), já presentes nos paramentos. É uma preparação para a Quaresma, uma série de avisos, uma entrada gradual no Mistério quaresmal, que será assim atingido aos poucos, para que a sua chegada súbita não nos pegue desprevenidos. Nada de sustos, nada de olhos inchados e remelentos!
As leituras da Santa Missa ajudam nesta preparação: No Domingo da Septuagésima, lê-se a história da Queda. Em seguida, vai-se percorrendo a História da Salvação, da Redenção; A Igreja nos conta de Noé na Sexagésima, e de Abraão na Quinquagésima: não estamos sozinhos! Na Quarta-Feira de Cinzas, fala-nos o santo profeta Joel: "Jejuai!" E recomenda Nosso Senhor: "quando jejuardes, não façais como os hipócritas"...
É a Quaresma que se inicia, preparando-nos, burilando-nos, polindo-nos para que, chegada a Páscoa, possamos nos reencontrar, felizes, com o Aleluia, com o Glória, com a re-ligação de Céus e Terra, na perfeita similitude e presença da Missa eterna da Jerusalém celeste em cada Missa celebrada em cada pequena capelinha do interior.
Pediu o Santo Padre que haja em enriquecimento mútuo das Formas Ordinária e Extraordinária da liturgia. Isto inclui, evidentemente, os calendários. Espero em Deus que a Forma Ordinária recupere em breve este tesouro, tão adequado à natureza humana, tão perfeitamente alinhado a nossas necessidades, que é o tempo da Septuagésima.
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E cala-se o Aleluia. E faz-se o silêncio. E chega, belo e assustador em toda a sua mística dimensão, o Mistério da Quaresma, Mistério de amor e de dor, de penitência e de esperança.
Unamos nossa voz à dos gregos, que cantam por esses dias:
"Abriu-se a porta da penitência; vinde, amigos de Deus, apressemo-nos de entrar, temendo que o Cristo no-la feche como a indignos! Ó, irmãos, munamo-nos da pureza, da abstinência, da modéstia, da força, da prudência, da oração e das lágrimas: é por estas virtudes que se abrirá para nós o sendeiro da justiça."
Laus tibi, Domine, Rex œternœ gloriœ !