Continuemos nossa série de textos a respeito do Próprio da Liturgia da Santa Missa em Rito Romano. Estes são os artigos anteriores:
Este sexto texto se dedica ao Ofertório.
*
Na Forma Extraordinária do Rito Romano, a “Missa Tridentina”, o Ofertório possui a sua própria antífona, assim como, já vimos, o Introito possui a sua e, logo veremos, a Comunhão também.
No Missal da Forma Ordinária do Rito Romano existem antífonas para o Introito e para a Comunhão, mas não para o Ofertório. Esta não foi a única modificação feita no Ofertório pelos executores da reforma litúrgica de 1969-1970; no Rito Novo ele se tornou consideravelmente mais curto.
Antífona do Ofertório da Solenidade da Ascensão do Senhor no Missal de 1962,
Rito Tridentino (Forma Extraordinária do Rito Romano)
Temos feito sempre alusão ao Graduale Romanum, nesta série de textos, como a fonte das peças gregorianas que se usam na Missa. Depois da reforma litúrgica de 1969-1970 foi organizado e publicado também um novo Graduale Romanum para o Rito Novo. A propósito, esta publicação foi feita não apenas por ser muito desejável, mas em cumprimento a uma determinação do Concílio Vaticano II.
Claro: quando o Concílio elaborou seus documentos, a reforma litúrgica ainda não tinha acontecido, e talvez não se esperasse que viesse a ser tão profunda. Entretanto, refiro-me às seguintes palavras:
117. Procure terminar-se a edição típica dos livros de canto gregoriano; prepare-se uma edição mais crítica dos livros já editados depois da reforma de S. Pio X.
Convirá preparar uma edição com melodias mais simples para uso das igrejas menores.
...que podem ser lidas no documento Sacrosanctum Concilium. A “edição com melodias mais simples” foi realizada no Graduale Simplex. Sem sequer pretender entrar, ainda que minimamente, em questões de interpretação do Concílio Vaticano II, fica muito claro por sua letra que seu ensinamento é o de pôr o canto gregoriano em “primeiro lugar”:
116. A Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano; terá este, por isso, na acção litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar.
Certo: “primeiro lugar” não significa “exclusividade”; mas isto abordaremos em outro texto, fora desta série.
De volta ao Graduale Romanum: temos uma edição feita em 1974, que atende às necessidades do Rito Novo. Para a Forma Extraordinária, utilizamos a edição de 1961.
Entretanto, ambas nos dão antífonas para o Ofertório. Isto é natural para a Forma Extraordinária, mas não encontra correspondente no Missal do Rito Novo.
Nisto acabaríamos entrando na questão das diferenças entre os textos das antífonas do Gradual e os textos das antífonas do Missal, e este assunto poderia obscurecer um pouco o foco desta série. Em todo caso, é importante dar-se conta de que se o Missal não provê uma antífona de Ofertório na Forma Ordinária, o Graduale Romanum o faz, e sua publicação traz a autoridade de um livro litúrgico aprovado pelo Sumo Pontífice.
A IGMR, infelizmente, não dá informações claras sobre a música no Ofertório, embora algumas conclusões possam ser tiradas.
74. O canto do ofertório acompanha a procissão das oferendas (cf. n. 37, b) e se prolonga pelo menos até que os dons tenham sido colocados sobre o altar. As normas relativas ao modo de cantar são as mesmas que para o canto da entrada (cf. n. 48). O canto pode sempre fazer parte dos ritos das oferendas, mesmo sem a procissão dos dons.
Com a permissão do leitor, preciso utilizar numerosas citações da IGMR. O número 74, colocado acima, faz referência ao 48 ao falar das “normas relativas ao modo de cantar”. O 48 explica o “canto de entrada”; já o vimos quando falamos do Introito.
48. O canto é executado alternadamente pelo grupo de cantores e pelo povo, ou pelo cantor e pelo povo, ou só pelo grupo de cantores. Pode-se usar a antífona com seu salmo, do Gradual romano ou do Gradual simples, ou então outro canto condizente com a ação sagrada e com a índole do dia ou do tempo, cujo texto tenha sido aprovado pela Conferência dos Bispos.
Não havendo canto à entrada, a antífona proposta no Missal é recitada pelos fiéis, ou por alguns deles, ou pelo leitor; ou então, pelo próprio sacerdote, que também pode adaptá-la a modo de exortação inicial (cf. n. 31).
Aplica-se, então a regra sobre quem canta (cantores e povo, cantor e povo ou cantores). Aplica-se também a regra de tomar música do Graduale Romanum ou do Graduale Simplex (e, como o canto gregoriano não é o único tipo de música permitido, pode-se usar também outra música que siga o texto destes livros).
A possibilidade de a antífona ser recitada, entretanto, não se aplica, já que para o Ofertório não existe “antífona proposta no Missal”. Esta parte, portanto, não se relaciona ao Ofertório.
Entretanto, existe a previsão de um Ofertório sem música:
142 (...) Contudo, se não houver canto de preparação das oferendas ou não houver música de fundo do órgão, na apresentação do pão e do vinho, o sacerdote pode proferir em voz alta as fórmulas de bendição, respondendo o povo: Bendito seja Deus para sempre.
Ofertório sem música não parece muito incomum, e pelo que tenho observado não poucas pessoas sabem a resposta Bendito seja Deus para sempre.
O número 142 menciona até “música de fundo do órgão”, que não aparece, na IGMR, em nenhum outro ponto que mencione o Ofertório – trata-se de música exclusivamente instrumental executada pelo órgão. Pessoalmente, gosto desta possibilidade, embora defenda o uso das antífonas do Ofertório colocadas pelo Graduale.
E por falar nas antífonas de Ofertório do Graduale, lembremo-nos de que, constantes apenas desse livro, e não do Missal, elas nos estão disponíveis apenas em latim. Se por qualquer motivo utilizamos o português (ou outra língua nacional) na Liturgia, não parece haver obstáculos para o uso de uma tradução correta e sóbria. Ademais, como os textos das antífonas são praticamente sempre extraídos da Escritura, uma simples consulta aos versículos pode prover o texto. Na pior das hipóteses, este texto entra na categoria de “outros” que, precisando da aprovação da conferência episcopal, já me parecem tê-la por simplesmente serem parte da Escritura. O leitor certamente concordará comigo que tal opção se mostra bem mais conveniente do que um famoso “canto de ofertório” usado em muitas paróquias no Tempo Pascal:
Eu creio num mundo novo
Pois Cristo ressuscitou
Eu vejo sua luz no povo
(...)
No pobre que se liberta
Eu vejo ressurreição.
Sabendo que as antífonas de Ofertório tomam seu texto da Sagrada Escritura, compreendemos imediatamente que não existe a menor necessidade de que os textos falem em pão, vinho, trigo, uva etc. É verdade que alguns cantos populares piedosos usados no Ofertório, já há algum tempo, falam nestas coisas todas; certamente não estou dizendo que seja errado. Entretanto, não há obrigatoriedade; exigir isto seria um pensamento de trilha sonora, em que o texto da música supostamente tivesse que descrever os acontecimentos.
*
As antífonas de Ofertório não diferem daquelas de Introito, quanto à estrutura de seu texto. A diferença mais notável se vê quando examinamos as partituras gregorianas: os Ofertórios são mais difíceis de cantar do que os Introitos, que em geral são um pouco menos complexos (as Comunhões, por sua vez, com grande freqüência são ainda menos complexas que os Introitos).
Por esta razão, é comum que, nos lugares onde se começa a implantar o uso do canto gregoriano, o Ofertório fique para depois – e deve ficar mesmo; parece-me mais produtivo começar pelas partes capazes de produzir resultados mais imediatos, como o Ordinário, a Comunhão, o Salmo Responsorial etc. A seu tempo, o Ofertório poderá ser feito.
O leitor me perdoe se eu me repito, mas gostaria de esclarecer novamente: estou, aqui, falando do canto gregoriano. Se a igreja (a paróquia, a capela, o instituto religioso etc.) utiliza outro tipo de música litúrgica legítimo e verdadeiramente sacro, pode ser que seu repertório específico não apresente essa dificuldade no Ofertório.
Que eu utilize o canto gregoriano como base destes textos sobre o Próprio se deve ao seu primeiro lugar no patrimônio litúrgico musical do Rito Romano. Aproveitamos assim a oportunidade de uma coisa (entender o Próprio) para já fazer outra (entender um pouco mais o canto gregoriano).
Na Forma Extraordinária, sendo o Ofertório (o rito, não a antífona) mais longo, é comum que, ao se terminar o canto da antífona, ainda reste tempo, durante o qual se pode cantar um moteto – uma composição polifônica sobre outro texto, que não a antífona do Ofertório. Este costume se encontra claramente codificado em Tra le sollecitudine, o motu proprio do papa São Pio X que provê numerosas diretrizes para a música sacra:
8. (...) Permite-se outrossim que, depois de cantado o ofertório prescrito, se possa executar, no tempo que resta, um breve moteto sobre palavras aprovadas pela Igreja.
Outra possibilidade foi trazida mais ao alcance dos grupos de canto gregoriano pela publicação do Offertoriale Triplex, em 1985. Este livro traz versículos adicionais para o Ofertório, da mesma maneira que, como vimos, é possível fazer no Introito.
No caso do Introito (e o mesmo ocorre na Comunhão), canta-se a antífona, e em seguida um versículo do salmo em tom salmódico; repete-se a antífona, e outro versículo; e assim por diante.
O Ofertório apresenta uma pequena diferença: depois de um versículo adicional, não se repete a antífona inteira, mas sua última “metade” (essa metade pode ser maior ou menor que uma “metade de verdade”). Esta é a estrutura de um responsório, tal como se pode encontrar no Ofício Divino (na Liturgia das Horas).
Abaixo, um exemplo: um responsório tomado do Ofício das Leituras do Ofício dos Fiéis Defuntos da Liturgia das Horas. A primeira parte, marcada com R, consta de quatro versos (um asterisco marca o início da segunda metade). A segunda parte, marcada com V, consta de três versos. Depois dela, é repetida apenas a parte de R que começa com o asterisco.
R - É preciso que ele reine até que tenha colocado
Debaixo de seus pés seus inimigos, todos eles,
* A morte há de ser o seu último inimigo,
A ser exterminado.
V - A morte e o seu reino devolverão todos os mortos
E a morte e o seu reino serão precipitados
No lago incandescente.
* A morte há de ser o seu último inimigo,
A ser exterminado.
Se numerarmos os versos, sua recitação (ou canto) ocorre nesta ordem: 1 – 2 – 3 – 4 – 5 – 6 – 7 – 3 – 4.
A repetição, no final, do trecho marcado com asterisco, é comumente abreviada nos livros (neste responsório, no livro vemos apenas * A morte.) – mas deve ser feita integralmente.
Mesmo quem não possua o Offertoriale Triplex pode utilizar estes versos adicionais, se adota o canto gregoriano em sua igreja. No link abaixo o leitor pode copiar um pdf feito por Richard Rice, do qual constam partituras gregorianas para um versículo, em tom salmódico, para cada Ofertório. As datas litúrgicas se referem à Forma Extraordinária, mas para o uso na Forma Ordinária basta consultar o nome do Ofertório respectivo.
No vídeo que deixo de exemplo, é cantado o Ofertório Sicut in holocausto, que na Forma Ordinária se aplica à Décima-Terceira Semana do Tempo Comum e, na Forma Extraordinária, ao Sétimo Domingo Depois de Pentecostes. A antífona é cantada uma única vez no vídeo, e o leitor poderá acompanhar o texto e a partitura no próprio vídeo. A direção é do professor William Mahrt, e a schola é composta apenas por mulheres.
O texto é do Livro de Daniel, capítulo 3, versículo 40: “como um holocausto de carneiros, touros e milhares de gordos cordeiros, seja diante de ti, hoje, nosso sacrifício, de vosso agrado. Pois não é confundido quem em vós põe sua confiança”.
Em latim: sicut in holocausto arietum et taurorum, et sicut in milibus agnorum pinguium: sic fiat sacrificium nostrum in conspectu tuo hodie, ut placeat tibi: quia non est confusio confidentibus in te Domine.
O cântico de ofertório deve-se obrigatoriamente
ResponderExcluirconter em sua letra pão e vinho?
Anônimo: essa obrigação não existe, de maneira nenhuma. Escrevi ali no texto:
ResponderExcluir"Sabendo que as antífonas de Ofertório tomam seu texto da Sagrada Escritura, compreendemos imediatamente que não existe a menor necessidade de que os textos falem em pão, vinho, trigo, uva etc."
Sobre os responsórios, uma curiosidade: se o "R." se associa a "Resposta", a que se refere o "V."?
ResponderExcluir---
Sobre o ofertório, hoje se acentua muito a ideia de entregar o coração, sentimentalismos, e se esquece que o momento do ofertório é também uma preparação imediata ao Cânon, portanto momento muito apropriado para recordar o sacrifício de Jesus na cruz. Talvez por isso a opção de um solo do orgão seja tão apropriada a esse momento em algumas ocasiões, com uma melodia reflexiva (creio que me fiz entender). Também há cantos populares muito apropriados, que de certa forma expressam a teologia da Missa, a resumem. Cito dois:
---
Sobe a Jerusalém, Virgem oferente sem igual.
Vai apresenta ao Pai, teu Menino: luz que chegou no natal.
E, junto à sua cruz, quando Deus morrer fica de pé.
Sim, ele te salvou, mas o ofereceste por nós com toda fé.
Nós vamos renovar este sacrifício de Jesus:
morte e ressurreição, vida que brotou de sua oferta na cruz.
Mãe, vem nos ensinar a fazer da vida uma oblação.
Culto agradável a Deus é fazer a oferta do próprio coração.
---
1. Senhor, apresentamos em súplice oração,
O cálice com vinho e na patena o pão.
O cálice com vinho e na patena o pão.
2. O pão vai converter-se na Carne de Jesus
E o vinho será Sangue que derramou na Cruz.
E o vinho será Sangue que derramou na Cruz.
---
Magníficos exemplos de verdadeira piedade popular.
Sinceramente, Sem. Rafael,
ExcluirOu vc não leu o artigo ou vc está querendo fazer de desentendido. Mais claro impossível: o canto deve ter base bíblica, conforme a patrística nos ensina e conforme o GR, livro de canto litúrgico por excelência.